Enfumaçado
Meu nome é Enrico Nunes, os amigos que não tenho chamam-me de Rico, então, vocês fiquem a vontade. Sou funcionário público. Sou Bibliotecário da biblioteca estadual, cargo conseguido através de concurso, sou o que chamam de funcionário efetivo ou estatutário. Nível Superior. Estou nesse emprego há quinze anos, tenho mais alguns para cumprir antes de me aposentar. Não posso reclamar do meu trabalho, é monótono mas não é desgastante. Tenho um salário bastante razoável, ao menos para mim, que não sou casado, não tenho filhos, e penso muito pouco no futuro. Vivo num pequeno apartamento que herdei de uma tia que gostava de mim. Coisa rara gostarem de mim. Sou um escroto convicto. Tenho pouquíssimos gastos domésticos. Gasto quase todo meu dinheiro com livros, álcool, cigarros e mulheres. Eventualmente também gasto com outras drogas, maconha e cocaína, só eventualmente. Meu grande problema é o álcool. Também sou metido a escritor. Tenho um fracassado livro publicado. E alguns contos espalhados pela rede. Eu só trabalho seis horas diariamente. Das sete da manhã à uma hora da tarde. O resto do dia eu uso para ler, escrever, beber e arrumar confusões nos bares enfumaçados que costumo ir. Sou o que se pode chamar de solitário. Pelo menos assim é que me veem, apesar de não sentir nenhum efeito da solidão. Também sou conhecido como antissocial. Não me considero nenhum dos dois. Acho que as pessoas reprimem seus sentimentos dando tapinhas nas costas dos outros, sejam eles amigos ou falsos amigos. A convivência social é nutrida por uma anastomose de hipocrisias vindas de um organismo pseudo-saudável. As pessoas se submetem a isso justamente para não serem taxadas de antissociais ou solitárias Eu não me acostumo em conviver, por muito tempo, com uma pessoa que fala mal de mim assim que eu viro as costas. As pessoas procuram avidamente estarem ou participarem de grupos. Não sendo assim não são felizes. Não são populares. Quando reflito sobre isso tenho a certeza que a solidão até que me cai bem. Gosto mesmo é de beber sozinho e no balcão do estabelecimento. Sempre faço amizade com o barman, e com ele fico sabendo quais são as mulheres mais disponíveis e quem está passando alguma droga. Desse jeito, quase sempre, consigo chegar na mulher certa e consigo um pó, quando estou afim, de qualidade para cheirar. Estou frequentando atualmente um pub perto do centro da cidade. Um barzinho bem aconchegante. Cheio de secretárias executivas, professoras universitárias e coroas carentes a procura de sexo. Também passa por lá alguns pequenos empresários, profissionais liberais e alguns malucos. Os malucos estão por todos os lugares. Estou saindo com uma professora universitária, que conheci aqui, neste bar. Ela não chegou ainda. Ela dá aula de Psicologia Social. O problema é que ela é viciada em pó, e fica sempre muito louca. E eu também estou sempre muito louco de bebida. Somos uma combinação muito explosiva. No dia que a conheci, ela estava conversando com um cara, parecendo íntimos. Quando eu passei perto deles, indo para o banheiro, ela passou a mão eu meu rosto e me chamou de bonitinho. Ela tava doidona. Quando voltei do banheiro o cara tava tentando agarrar ela a força, e quando vi que ela realmente não queria nada com ele, resolvi interceder. Afastei o marmanjo com uma tapa na cara e arrebentei seu nariz com um direto de direita. Quando estava saindo contando vantagem senti uma porrada na cabeça. O maluco quebrou uma garrafa de cerveja no meu cocoruto. Escorreu sangue pra todo lado. Os seguranças apartaram e fomos convidados a nos retirar. Meu desafeto ficou proibido de voltar ao estabelecimento pois era reincidente. Eu só tomei uma advertência. Finalmente Norma chegou, veio em minha direção e me deu um beijo. Pude sentir seu hálito de pó. Ficamos umas três horas no barzinho, nos revezando entre uísque e pó. Assim que terminou a apresentação da banda de blues que tocava, resolvemos ir para meu apartamento. Chegando lá continuamos a beber. Norma tava muito doida. Eu estava muito louco. De uma hora para outra ela começou a gritar que o pó tinha acabado e que ela queria mais. Eu continuei bebendo meu conhaque e ouvindo Eric Clapton, sem dar muita bola pra ela. Ela então pediu que eu abrisse a porta. Ela iria atrás de mais droga. Retruquei que não era uma boa ideia, há essa hora ela só iria conseguir pegar alguma porcaria misturada que não era cocaína. Ela insistiu. Eu abri a porta e ela saiu. Quinze minutos depois ela voltou e estava mais fora de controle do que antes. O traficante se recusou a vender a droga fiado a ela. Ela já estava devendo muito. Ela me pediu dinheiro emprestado para comprar. Eu me recusei a emprestar. Ela começou a gritar um monte de impropérios para mim. Não dei atenção. Ela podia gritar a vontade, a vizinhança já conhecia as biscates que eu levava pra casa, não iam estranhar mais uma gritaria. Aí aconteceu algo que piorou muito a coisa. Ela resolveu partir pra cima de mim. Primeiro jogou a garrafa de conhaque em minha direção, consegui me desviar, e a garrafa se espatifou na parede. Fiquei muito puto, era um conhaque importado e eu tinha acabado de abri-lo. Pedi pra que ela parasse com aquilo e fosse embora. Ela não foi. Em vez disso, tirou de sua bolsa uma faca de caça e disse que ia me matar. Aquilo me deixou com medo. Que tipo de mulher anda com uma faca daquela dentro da bolsa? Comecei a viajar se ela já não tinha matado alguém, se não era uma psicopata. Ela era psicóloga, isso eu sabia, e quando não estava lecionando na universidade, atendia no seu consultório particular pessoas com problemas de comportamento. Sempre desconfiei de Psicólogos e Psiquiatras. Sempre os achei tão problemáticos quanto seus pacientes. Ela estava agindo como seus pacientes. Era uma desequilibrada como eles. Eu estava muito embriagado, mas a situação me deixou ligadão, com os sentidos todos a flor da pele. Ela continuou vindo pra cima de mim com a faca na mão gritando que ia me furar se eu não desse dinheiro a ela. Eu dizia que não ia dar porra de dinheiro nenhum. Ela começou a chegar mais perto e quando ela deu um vacilo arranquei a faca da mão dela e meti uma porrada na sua cara com a mão que eu estava segurando o copo. O estrago foi grande. Seu rosto ficou muito machucado e um dente da frente, acho que é incisivo que chama, avulsionou, caiu em cima do sofá, e começou a jorrar sangue de sua boca. Ela gritava desesperada dizendo que eu tinha deixado-a banguela. Acabei ficando com pena da infeliz. Liguei pra um dentista conhecido meu e a levei, junto com seu dente, para o consultório dele. Quase uma hora depois o dentista chegou com cara de sono, ou de ressaca, não soube muito bem distinguir. Dentro do consultório, ele, na medida do possível conseguiu colocar o dente no lugar. Suturou, explicou o que deveria ser feito, e não deu garantia do serviço. Passou medicamentos e cobrou uma fortuna. Dentista é foda! Tudo ladrão. Quando chegamos de volta a meu apartamento, Norma já estava mais calma. Abri duas latinhas de cerveja. Bebemos em silêncio e quando acabamos fomos transar e dormir. Acordei quase seis da tarde. Ela estava deitada no meu peito, o seu rosto tava muito fudido. Inchado e com um vermelhão que cobria quase toda sua bochecha. Não contive uma gargalhada. Levantei e abri uma cerveja. Era sábado e a noite seria longa.