FESTA INESQUECÍVEL

Houve uma época que as coisas lá em casa ficaram muito difíceis.

Tivemos que nos mudar para uma casa bem menor no centro velho da cidade porque meu pai dizia que assim não precisaria pagar passagem de ônibus para chegar ao serviço.

Tempos depois fiquei sabendo que a firma em que ele havia trabalhado por mais de quinze anos, fechara as portas da noite para o dia, deixando funcionários, fornecedores e fisco a ver navios.

As economias que meus pais faziam todo mês para realizarem a viagem dos sonhos tantas vezes imaginada e comentada, rapidamente se transformaram em feiras porque éramos quatro filhos, sendo eu o terceiro com onze anos de idade.

Quando a casa nova estava arrumada com os móveis que sobraram, porque a maior parte havia sido vendida, meu irmão mais velho saiu, escondido do meu pai, para procurar emprego.

Minha mãe colocou uma placa de COSTURA-SE E PASSA-SE POINT-A-JOUR, pregada na parede junto à porta.

Meu segundo irmão disse que iria para a Marinha, que já estava com catorze anos e podia ser Grumete na escola de Aprendizes Marinheiros.

Sem ter o que fazer, fui sentar no muro, com as pernas balançando para o lado de fora.

Minha irmã menor, com nove anos, disse que não sairia de casa porque não queria fazer amizade com ninguém dalí.

Nossa rua começava com um portão de ferro preso ao muro alto, tinha quatro casas de cada lado e terminava na parede de uma fábrica de não sei o quê. Só sei que fedia muito.

A nossa casa era a terceira do lado direito e tinha um poste de luz bem junto ao portão de madeira pintado de verde da cor de alface.

Era o dia da mudança, e logo que anoiteceu, as donas das outras casas, chegaram ao portão e uma delas me disse:

- Anda via, me chama tua mama.

Sem me mexer do local privilegiado para assistir aquilo tudo, gritei a plenos pulmões.

- Mamãe, tem um bando de mulher procurando a senhora.

Minha mãe apareceu na porta e mesmo sem esperar convite para entrar a mulher volumosa que havia falado comigo abriu o portão e todas entraram para a sala.

- Nós somos suas vizinhas e viemos dar-lhes as boas vindas.

Mamãe boquiaberta viu cada uma delas colocar sobre a mesa, cestinhas cobertas com pano bordado, contendo pão caseiro, frutas frescas e secas, bolo de milho, biscoitos de goma, pote de doce em calda, um buquê de flores e uma jarra d’água.

A mesma senhora disse: - Estou esperando vocês para comerem uma pasta porque sei que em dias de mudança a dona da casa não tem tempo para nada, muito menos para preparar comida.

E virando-se para mim e para minha irmã: - Eu sou a Nona Rosa e quero que vocês me tomem abênção todos os dias, quando acordarem e quanto forem dormir. Aqui nós somos uma família unida.

Assustado, olhei para mamãe e ela mandou que eu obedecesse.

Tomei abênção beijando a mão gorda, macia e cheirando a alho daquela senhora enorme com os olhos mais bondosos que já vi e que, a partir daquele momento, passei a chamar de Nona Rosa.

Eu não tinha a menor ideia de que nona e vovó são palavras que significam a mesma coisa.

Ela nos abraçou, a mim e minha irmã, quase nos afogando em seus seios fartos.

Quando meu pai chegou fomos comer a pasta que nada mais é do que macarrão nadando no molho de tomate com folhinhas de manjericão roxo e punhados de queijo ralado por cima.

Todos nós bebemos vinho. O vinho dos pequenos tinha água misturada.

Mesmo assim fiquei com muito sono e mamãe me levou para casa enquanto papai ficou conversando com o seu Genaro, sentados no banco do jardim, bebericando o finzinho da garrafa de vinho.

A maioria dos nossos vizinhos era de idosos e os filhos crescidos não moravam com eles. Éramos apenas oito crianças.

Na primeira casa morava a família de seu Hans, um alemão com mais de dois metros de altura que tinha um casal de filhos. A menina Gertrudes era da minha idade.

Se é verdade que os anjos existem eles devem ser tão bonitos quanto ela.

O rosto parecia dessas bonecas de louça que agente só vê nas vitrines das lojas, porque eu acho que ninguém tem dinheiro bastante para comprar uma boneca daquelas. Gertrudes tinha os cabelos louros, pouco abaixo do ombro, cujos cachos balançavam quando ela falava.

Hans o irmão, ficou meu amigo no mesmo dia em que chegamos.

Na última casa, morava um casal português com uma sobrinha solteira de idade indefinida.

Seu João toda noite trazia um punhado de bombom de menta e distribuía com as crianças.

Lilian, minha irmã, que dissera que jamais faria amizade com quem quer que fosse, fez amizade no mesmo dia com Gertrudes e passavam as horas livres costurando roupas de pano para as bonecas.

Zé Luiz, um dos meninos vizinho, sabia fazer pipa e nos ensinou para que fizéssemos as nossas para empinarmos no terreno vazio ao lado do colégio onde fomos estudar.

A vida seguia com seus altos e baixos.

Bento, meu segundo irmão foi matriculado por mamãe na escola de aprendizes e só vinha para casa uma vez por mês até que embarcou para o Rio de Janeiro.

Meu irmão mais velho, Zé Pedro, arranjou emprego de aprendiz na fábrica fedorenta e passava a manhã toda lá. À tarde ia para a escola, porque ele tinha dezesseis anos e a lei o mandava trabalhar num expediente e estudar no outro.

Ensinei aos meus colegas a fazer carrinhos com latas de óleo de cozinha e uma ou outra lata vazia de óleo de carro que meu pai trazia do posto onde ele arranjou emprego de frentista.

As latas eram cortadas com a tesoura de mamãe costurar, logicamente sem o conhecimento ou consentimento dela.

Quando chegou o mês de abril, meu pai recebeu convite do seu João para gerenciar a padaria porque ele queria ter todo tempo para preparar a festa de São João, que seria a última no Brasil, pois ele iria com a família, no final do ano de vez para Portugal.

Além das fogueiras e da decoração como se faz em Portugal, haveria as comidas e as danças típicas dos dois países.

Quando seu João foi falar com meu pai para ele deixar eu e minha irmã participar dos grupos de dança, eu disse:

- Eu só danço se meu par for Gertrudes em todas as danças.

- Eu cá estou a ti entender, oh! Manganão. Disse-me o seu João, dando-me um abraço com o cheiro acre do vinho, azeite, cebola, alho com pão que ele comia em todo jantar.

Começaram os ensaios de Malhão, Vira, Quadrilha, Côco e Catira.

Seriam cinco danças diferentes, começando às seis da noite, uma dança diferente a cada hora, porque às onze, os pequenos, como éramos chamados, teriam que ir para a cama.

Nosso grupo era formado por oito pares com crianças da redondeza que vieram para poder completar o número mínimo de participantes e os ensaios que começaram caóticos, na segunda semana parecia de profissionais.

Seu João fez questão de comprar todos os panos para minha mãe fazer as roupas.

Gertrudes vestida de Varina e eu vestido como um Campinho de Estremadura, era o destaque do grupo.

Apaixonado como eu estava, diante de tanta formosura de minha dama, sem que ela esperasse, dei-lhe um beijo na boca, perfumada à menta, que ostentava as duas fileiras perfeitas de dentes muito brancos, brilhantes e lindos como a dona deles.

Quando Gertrudes conseguiu se livrar do meu abraço, vibrou, com uma força que eu jamais desconfiei que ela possuísse, a maior tapa na cara que alguém já levou.

E, meio tonto, eu a ouvi dizer que não dançaria mais comigo.

A sobrinha de seu João que era a encarregada dos ensaios apaziguou os ânimos.

Afinal só faltavam dois dias para a festa. Como iriam fazer para arranjar os substitutos?

Depois de muita conversa e de eu prometer que jamais faria aquilo outra vez, Gertrudes concordou em dançar comigo, mas que não perdoaria, de forma alguma, a minha ousadia.

No dia seguinte, depois do ensaio, quando estávamos voltando para nossas casas, Gertrudes me disse:

- Eu não devia ter feito aquilo com você. Por favor me desculpe...

E antes que eu pudesse dizer algo, ela deu-me o beijo mais longo, apaixonado e saboroso que jamais ganhei em toda minha vida.

Esse conto é dedicado ao confrade Paulo Moreno, que viveu experiência semelhante e, como eu sou "criador de casos e tenho a língua grande que não cabe na boca" passo para todos que me dão a honra de ler o que publico.

Ao Paulo meu abraço de agradecimento.