O Cozido à Portuguesa

Olhava-a e sentia pena. Ali estava ela, deitada, gastando as últimas horas de uma vida que fora sempre de grandes lutas e muito sofrimento! Era uma guerreira mas estava frágil, lívida, levemente amarelada. Ajeitou-lhe a almofada, passou-lhe pomada nas costas das mãos massacradas de agulhas. O soro e a inépcia das novatas da enfermaria deixaram marcas e, embora já nada houvesse a fazer, todas as pequenas atenções amenizavam o desconforto de Cacilda de Freitas, sua sogra, e aliviavam-no também. Cuidava ele de tudo para que a mulher não perdesse o emprego. Entrara de férias para ajudar a resolver as coisas mas, como lhe explicou o médico, era um caso perdido e, portanto, uma vez que nada adiantava ali, davam-lhe alta. Fazia falta, na enfermaria, a cama que ela ocupava e a solução para o problema da saída teria de ser achada em família. Era duro, concordaram, mas as regras eram para cumprir. Nem valeria a pena inscrevê-la nos cuidados continuados porque talvez a paciente não aguentasse mais duas semanas, adiantaram. Tratem-na bem e com carinho, é tudo o que poderão fazer por ela, acrescentou o clínico. E… cresceu-lhe a revolta! António, que se habituara a respeitar a sogra e a considerá-la como a mãe que tão cedo perdera, que aturara as repetidas idas ao médico, os transportes de táxi e nas ambulâncias, que a viu vomitar sob o efeito das radiografias de contraste e da quimioterapia, que a consolou com a perda de cabelos, se alegrou com a aparente recuperação, que seguiu todos os passos de uma tortura imperiosa e necessária via, com desânimo e angústia, a Cacilda chegar ao fim. Acabavam-se, assim, os gastos, dores, choros, lamentações, incertezas – pensou - mas parecia-lhe que nada daquilo fazia sentido, nada deveria ser assim. Prolonga-se a vida das pessoas, indefinidamente, para cumprirem as tais normas mas a verdade é que António achava um desaforo a sujeição a tudo o que a sogra enfrentou mesmo depois de se saber que só poderia ganhar uns meses mais de vida, sem qualidade, naquela agonia.

Como não posso ir na ambulância consigo, sigo de táxi e estarei à porta para a acomodar no seu quarto, disse à sogra enquanto os maqueiros a colocavam na viatura. Tenha calma, D. Cacilda, eu vou cuidar de tudo, acrescentou com a voz a tremer de nervosismo. Mas, sonolenta com a medicação para as dores, a doente já nem o escutou. No trajecto para casa, deprimido com a situação e sem dar resposta à conversa do taxista, António viu passar o filme dos últimos vinte anos da sua vida, ainda no tempo das ingenuidades juvenis, das certezas, da imaginação à solta. Quando conheceu a Gina, sua mulher, a Cacilda começou por implicar com ele, por achar que, sendo ambos estudantes, tinham era que estudar e não andar com namoricos pelos cantos. Foi por sugestão do Ambrósio, seu futuro sogro, que ela aceitou que António frequentasse a casa e estudassem juntos na sala, à vista da Avó, dela própria ou de alguém de idoneidade reconhecida. A princípio foram os ralhos, os rigores da vigilância, as piadas toscas. Depois, a Avó fingia adormecer ou adormecia e a Cacilda recolhia-se para a sesta. Aproveitavam então para ficar de mãos dadas, ensaiar um ou outro beijo, tentar, muito tempo depois, uma ou outra exploração mais ousada. Foi, aliás, vendo uma destas intimidades mais fortes que a família da Gina achou melhor forçar o casamento. Casaram-se quando ainda faltavam todas as provas do último semestre e a Gina acabou por não se formar naquela altura. Passaram a morar com os pais dela e só trocaram a cama da moça por uma de casal. Nem festa nem, muito menos, viagem de núpcias. Davam-se todos muito bem e o Ambrósio distinguia-o até com grandes atenções e cuidados porque ambos eram sócios do Sporting. Ele acabou por trabalhar como fisioterapeuta numa clínica de Cascais mas a Gina, só com grande dificuldade acabaria o curso e, desgostosa com a realidade da profissão, em breve trocaria a vida a dar massagens a doentes por uma mais compatível com as suas aptidões e fizera-se secretária de um ilustre desconhecido numa grande empresa de Lisboa.

Nos anos seguintes muitas coisas mudariam nas suas vidas. Morreu o Ambrósio de embolia pulmonar e a velha Conceição, mãe dele, um ano depois, de mal indefinido a que, na autópsia, talvez para encurtar razões, designaram por congestão e edema cerebral. A casa ficou, assim, repentinamente, enorme, silenciosa e vazia. Muito tempo se passou antes de voltar à normalidade. Havia o trabalho que todos tinham de realizar para viver e isso acabou por fazer com que a conformação chegasse mais cedo. O lugar de Ambrósio ficava sempre vago à cabeceira da mesa mesmo quando, com visitas, se tivessem de apertar todos, no resto dos lugares. Foi assim anos a fio, até que, contrariando a Cacilda, a filha decidiu ser tempo de enveredar por novas regras. Passaria António a ocupar a cabeceira da mesa já que era ele agora o chefe da família, o homem da casa, ou sairiam dali para viver as suas vidas longe. Foi assim que a Cacilda, após muitas lágrimas, aceitou as alterações esquecendo a homenagem ao defunto. Com o rodar dos meses, acabou por retomar a velha alegria esfusiante que a tornava simpática a todos os que com ela privavam. Soube António elogiar-lhe os dotes, a gestão do dinheiro, o tempero das comidas. Afeiçoaram-se e construíram a harmonia que existia entre os três e os compensava da falta de crianças que o casal nunca conseguiu. Suspeitava-se da infertilidade da Gina mas o assunto não foi discutido e nunca se realizaram pesquisas médicas para assinalar o infértil. António receava que o mal fosse seu e ela também. Decidiram que, embora não fosse a mesma coisa, um cão e dois gatos serviam muito bem para a expansão da ternura sobrante. Prosperaram devagar e tinham, agora, uma vida mais folgada. Um dia, porém, Cacilda queixou-se de dores no ventre, dores de cabeça, tonturas. E a odisseia começou. Atenuava a maleita umas semanas e regressava, insidiosa, para fazer penar toda a gente. Emagreceu muito e tudo indicava um mal daqueles de que se não tem saída. Sabiam disto a Gina e o António mas Cacilda só suspeitava. Tinha medo de abrir os envelopes das análises, medo de fazer perguntas, medo de não aguentar verdades decisivas que acabariam com a sua esperança no futuro. Assim, sujeitava-se a dietas, tratamentos, radiografias, análises, consultas e gastos sem discutir ou sem se rebelar. Passou a rezar o terço, quis ir a Fátima no treze de Maio, untou-se com óleos bentos e manteve a lamparina acesa o tempo todo. Olhava-se para a Senhora lacrimosa e viam-se as sombras passear-lhe pelo manto, escapar do pequeno altar e atirar manchas escuras a quem passasse aos pés da cama movimentando o ar do quarto. António, sabedor da inutilidade das preces a uma imagem de barro, ou da pouca valia da repetição massacrante do terço, ficava indiferente mas compreendia a sogra, a atitude da mulher e apoiava, com respeitoso silêncio, a hora das preces, sempre as mesmas, ditas automaticamente como se pertencessem a rituais pagãos. Nunca o padre a veio ver e seria obrigação sua porque Cacilda, devota desde menina, se habituara a contribuir, generosamente, com a côngrua e para as obras e iniciativas da paróquia. Recusou pedir ao senhor cura a vinda a sua casa e acabou, conformada com a ausência, a acreditar nas mentiras piedosas do genro que lhe dissera haver preces, na Igreja das Marianas, por intenção da sua cura.

Um dia, que parecia ser como outro qualquer, acordou a família com os gritos de Cacilda, toda vomitada de sangue e com dores insuportáveis no ventre. Há exactos dois meses que estava acamada e que só se erguia para as consultas e análises no regime ambulatório. Ninguém foi trabalhar, ninguém tomou o pequeno-almoço e todos seguiram a ambulância dos Bombeiros até ao Hospital. Nas Urgências, uma espécie de mercado marroquino, com gente gripada, acidentada e sofredora aguardaram vez. Seria necessário ter muita energia e saúde para se sair incólume daquele inferno. Cacilda depressa foi para o interior do edifício principal e ambos aguardaram horas angustiantes pela decisão da equipa de serviço: ficaria internada para observação, que voltassem na hora da visita e a procurassem no pavilhão C, sala 10. Apesar das imagens radiológicas ainda tentaram a cirurgia mas as metástases já assolavam o corpo débil da doente que só ficaria mais três dias na enfermaria antes de lhe ser dada a alta definitiva. Agora era apenas António que tratava dela, quem lhe dava a medicação e quem lhe aplicava as injecções prescritas. Após a inoculação da morfina, Cacilda relaxava, ficava muito bem-disposta e chegava mesmo a cantar velhas modas do seu tempo. Depois, pouco a pouco, caía-lhe um desespero grande e debulhava-se em lágrimas. Na verdade aquilo não era vida para ninguém. Por pena, António já lhe havia dito que o médico só dera alta por saber que, depois da cirurgia, ela estava clinicamente no caminho da cura. Adiantou que o médico também avisara que teria dores e que seriam fortes nos dias seguintes. Era normal, afiançava. Abrandariam aos poucos. A dieta seria aligeirada e tinha mesmo licença do médico para, uma vez por outra, lhe dar uma comidinha mais forte. Hoje, por exemplo, D. Cacilda. O que lhe apetece? Vamos, senhora, não se acanhe que eu vou até ao fim do mundo para lhe fazer os gostos. Cozido? À portuguesa? Pois seja o cozido à portuguesa. Tratou o António de sair para o comprar e conseguiu o cozido completo: chispe e orelha de porco, nacos de vitela, chouriça de sangue, farinheira, uma perna de galinha, couve lombarda, cenoura, feijão, nabo, mais o genuíno chouriço de fumeiro, tudo com um aspecto fantástico! A seguir abriu a garrafa do tinto, bela pinga alentejana, aromática e encorpada. Pôs a mesa para dois, ergueu a doente e ajudou-a a acomodar-se na cadeira e aconchegou-lhe a almofada das costas para a posicionar com mais conforto. Comeram bem e beberam melhor. Soltou-se a língua à Cacilda e ela falou deles, da família, dos bens que havia na terra, no gosto que fazia de ir lá no verão, do muito que se afeiçoara a ele, António, considerado como mais um filho. Estava alegre e risonha como a não viam há meses. Beberam mais um copo, atacaram um pudim Abade de Priscos e tomaram café. Fora uma refeição completa, a matar saudades de tudo e a interromper uma dieta de vários meses. A seguir Cacilda quis deitar-se. Sentia-se levemente tonta, disse. Amparada voltou à cama e tentou, em vão, sossegar. Ficou António a segurar-lhe a mão até a ver mais calma. O suor caia-lhe em bica pela fronte, empapava-lhe os cabelos e perlava-lhe as pálpebras, os lábios, o queixo e o pescoço. Ele abanava-a com um pedaço de cartão mas o desconforto era evidente na doente que tentava, agora, arrancar de si as roupas, levantar-se. Aos ais sucederam-se uma série de convulsões, os olhos rodaram sem controlo, a boca crispou-se, franzida e o estertor final abalou o corpo inteiro antes de Cacilda abrir muito os olhos, soltar um grande suspiro e fazer descair a cabeça para a esquerda. Acabara.

Eliminados os vestígios do cozido, tratou António de informar da morte de Cacilda a mulher e a família. Sentia-se livre, com a sensação de um dever cumprido ainda que genuínas lágrimas lhe corressem pelo rosto para assinalar uma perda que, sem paradoxos ou ironia, também lhe dizia respeito.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 02/12/2011
Reeditado em 05/02/2014
Código do texto: T3367862
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