Era Uma Vez algo a que chamaram Europa…

Crónicas de um tempo que espero que nunca chegue…

Quando retiram a um homem a sua alma ou o despem dos seus valores, é de esperar o pior porque certamente virá o pior, pois é a alma ou os seus valores que muitas vezes o separam das trevas…

O Parlamento está a arder…

Berlim está a arder…

Grupos heterogéneos de homens dedicam-se de forma afincada, e invulgarmente violenta ao mesmo tempo, aos últimos combates e às pilhagens ou meramente ao caos que se segue sempre aos combates…

Do que resta de um antigo bloco de escritórios observo o Parlamento e espero as ordens que me vão lançar na batalha, pois apesar de os arredores do edifício estarem controlados, este resiste, resiste como sempre, como se nele residisse o que restava do orgulho alemão, e por isso ele resistirá quase até ao último homem, porque aprendi que podem tirar tudo a um alemão que ele não reage de uma forma diferente do resto dos homens, mas se lhe tiram ou ameaçam tirar o orgulho ele resistirá de forma diferente dos outros homens…

Os restos da cúpula de vidro do Parlamento indicam que estamos no século vinte e um e não no virar da primeira década do século vinte, onde Berlim tinha caído pela última vez…

Como se tal fosse possível pelo que se passou em Abril e Maio de 1945, a violência e o caos ainda são maiores do que aqueles que os enraivecidos pelo ódio da vingança foram exercidos pelos soviéticos…

Depois de 1945 julgámos tal ser impossível na moderna Europa, mas sim, tal é possível, porque uma das especialidades humanas é recriar e inovar o ódio, o caos e a destruição, velhos sentires que se adaptam aos tempos modernos, de nada servindo a evolução da civilização, da cultura, porque em tempos de guerra elas são as mesmas de sempre, com a diferença relevante de serem mais letais devido à aplicação da tecnologia…É engraçado que a modernidade de que tanto nos orgulhamos de forma consecutiva desde que estabelecemos as primeiras civilizações, recusa os valores que a tornaram possível, e a única coisa que usa dessa modernidade é de facto as armas, com o velho espírito ancestral de combate, com um esboço de ordem e de disciplina não por razões civilizacionais, mas meramente para maximizar e rentabilizar a pilhagem e a destruição, mesmo entre exércitos ditos civilizados… (se alguém duvida de tal basta recordar as tais cenas de pilhagem mesmo entre nações democráticas e civilizadas (como gostavam de auto-denominar os aliados…) na Alemanha de 1945…- os museus e os descendentes dos combatentes estão repletos do produto dessas pilhagens…

Claro que a ausência de uma cultura, de uma moral, de princípios entre os combatentes potenciam isso, mas há uma altura em que até mesmo os mais cultos, os mais morais se perdem e fazem exactamente o que fazem os seus camaradas, bastando que para tal a lógica da sua sociedade seja uma lógica onde os valores, a moral, a ética, mesmo se existentes são secundarizados por outra ordem de valores…

Pela rádio, pelas comunicações das unidades intervenientes no teatro de operações vejo que ainda disponho de algum tempo antes de entrar na fornalha, e por isso tenho ainda algum tempo de reflectir de forma retrospectiva sobre o que nos levou até aqui…

Todos sabemos o que nos levou a este local, a informação é abundante, as análises foram feitas no devido tempo, mesmo as chamadas pessoas da denominada “baixa cultura” sabem, ou antes, deveriam saber, porque todos andámos entretidos, deixámo-nos entreter por outras coisas que pouco valor tinham, mas que pela conveniência dos poderes foram eleitas as mais importantes de todas, fazendo com isso uma lobotomia global à população, esquecendo, ou simplesmente não querendo ver que a história oficial até pode ignorar ou branquear de forma oportunista certos factos, mas as histórias que se contam entre os povos, muitas vezes de forma oral, não se apagam, não se esquecem, ficam lá, sendo que as coisas se revelam delicadas quando essas histórias comportam consigo velhos ódios, velhos ajustes de contas nunca acertados que só esperam uma oportunidade para se revelarem, mesmo que os intervenientes directos estejam há muito falecidos, e a questão poderá muito bem vir a ser entre netos ou bisnetos que nunca esqueceram a afronta ao seu antepassado…e mesmo que as políticas e diplomacias dos seus governos digam o contrário, essas histórias não se apagam, estão lá escondidas à espera que a política e a diplomacia oficial com elas sejam consentâneas para tudo voltar a acontecer…

Mas não, nós éramos a excepção, tínhamos alcançado um tal nível civilizacional que o que disse acima era algo datado, anacrónico, algo que jamais teria lugar na Europa dos nossos dias, esquecendo o que se passou na primeira metade da última década do século vinte num país que em tempos se chamou Jugoslávia…Uma lição de história que deveríamos termos assimilado e compreendido para nosso próprio bem…Porque apesar de ter uma história muito própria, muito personalizada, o que se passou na Jugoslávia foi uma pequena amostra do que se poderia passar a nível Europeu, bastando apenas para isso que os ingredientes estivessem reunidos e o acaso, ou talvez não, os misturassem…

Compreendo um pouco essa negação de factos pela algo surpreendente história que aconteceu na Europa a seguir a 1945…: muito rapidamente e com a ajuda de capitais e bens norte-americanos intactos porque a guerra não tocara o seu continente, a Europa reconstrui-se e solidificou-se, sendo o exemplo da Alemanha o mais paradigmático do chamado “milagre europeu”…Ao qual se seguiu uma pequena união económica que em breve se expandiu para outras nações fora do seu núcleo inicial e mais do que uma união de interesses comerciais se transformou também numa união de valores…O cidadão e o seu bem estar passaram a estarem no centro de tudo, de todas as politicas de bem estar, a economia servia o cidadão comum e não o cidadão comum servia a economia, o que deu origem a um progresso e um bem estar comuns muitos milhões de pessoas sem igual na história humana…E assim os ressentimentos da última guerra foram esquecidos, pois todos julgavam sem lógica, sem nexo, sem sentido, porque o que interessava era a união de antigos inimigos recentes, porque o que interessava era o seu progresso…Esquecendo factos tão importantes como o pormenor de França se ter apetrechado de armamento nuclear para evitar uma derrota semelhante à humilhante sofrida em Maio/Junho de 1940…porque apesar de entretanto aliada e boa amiga do vizinho do norte, a França não esquecera que desde a união do estado alemão tinham ocorrido diversas guerras com esse estado em relativo pouco tempo…

Porque toda a gente ficou encantada com uma União onde os valores davam primazia às pessoas, uma União onde mesmo os estados menos relevantes tinham uma opinião a dar nas politicas da União, uma opinião que era levada em conta na hora da tomada das decisões, que deveriam servir todos os estados membros e não somente os mais fortes ou poderosos, porque era uma união onde de facto eram todos iguais, o que fortaleceu os laços e fez nascer a ambição de ir ainda mais longe, apesar de de facto entretanto começar a haver uma economia que se começou a destacar de todas as outras que perderam fôlego e que por isso deixou que a tal economia se tornasse quase hegemónica…

Porque sendo a prosperidade mais ao menos comum a todos os membros, porque se haviam de importar com quem passou a comandar de facto a União…? Porque se haviam de preocupar das decisões entretanto passarem a serem tomadas apenas por alguns e não por todos…? Porque haviam de se preocupar com a reforma dos políticos que tinham dado primazia às pessoas secundarizando às pessoas o resto…? (ou pelo menos assim parecia…porque as politicas de apoio social eram as mais relevantes de qualquer civilização e dispunham de vastas verbas para de facto protegerem os mais desfavorecidos…) Porque se importarem com a ascensão ao poder de tecnocratas frios cuja especialidade eram os números e as pessoas um objecto a usar para esses números baterem certo…? Porque se preocuparem pelo esvaziar dos valores de solidariedade que tinham levado à tal prosperidade depois de devidamente articulados com a economia…? Porque se preocuparem se o bem estar de que dispunham passou a ser em parte devido ao endividamento dos seus países cuja economia tinha sido ultrapassada por outras fora do continente, e que para manterem o nível de vida alcançado, em vez de o atenuar lentamente o mantinham de uma forma insustentável porque haveria de chegar o dia em que o tal indevidamente seria insustentável…? Porque se preocuparem se os povos e os próprios políticos da nação cuja economia era de facto a única verdadeiramente saudável se começaram a julgar superiores aos seus parceiros de União e que por isso deveriam serem estes a obedecer-lhe quase sem discussão…?

Realmente porque razão as pessoas se haveriam de preocupar se tudo corria bem…?

Até que uma severa crise económica originou uma social e então pessoas e políticos se começaram a preocupar verdadeiramente com tudo isto quando o seu nível de vida decresceu para valores antigos, quando as suas economias começaram a ruir e elas se aperceberam que obedeciam de facto à Alemanha que devia a sua prosperidade não somente ao seu esforço e rigores bem germânicos mas também ao tal endividamento das nações que adquiriram os seus produtos à custa de imensas dividas que tinha chegado a hora de pagar, o que originou uma dieta orçamental, um emagrecer que fez com que o tal nível de vida recuasse de forma quase vertiginosa…?

Como entretanto se aperceberam de facto ser a Alemanha a mandar e que dispunha de protegidos, que não olhava da mesma forma todos os membros da União, que a igualdade passou a ser uma falácia, que a Alemanha mantinha o seu nível de vida ao contrário da quase totalidade dos outros membros, as tais histórias de ódios e ressentimentos antigos voltaram…e em força…E a Alemanha passou em surdina a ser o alvo do descontentamento que tinha tomado conta da União, mas sem ser assumido…

Ressentidos pelo modelo de controlo orçamental que a Alemanha impôs era muitíssimo rígido e asfixiante, que nem sequer deveria ser debatido, apenas aceite, que de facto a Alemanha se visse como superior e os outros inferiores, que esta nação se tivesse esquecido que para ser erguida das cinzas da guerra teve o apoio e solidariedades europeus aos quais virava as costas, desgostosos pela falta de agilidade alemã, fiel ao seu modelo de rigidez, que esquecia que cada povo deveria ser tratado de uma forma particular apesar da economia ser de facto global…A falta de visão e uma quase ausência de diálogo com os outros membros só piorou as coisas…Naturalmente que a Alemanha tinha culpa na crise, mas essa culpa foi empolada para níveis perigosos por políticos dos países em crise profunda que esqueciam que também tinham culpas no cartório…Mas a melhor forma de alijar responsabilidades, a velha maneira é arranjar outro culpado…e como a Alemanha se colocou a jeito, o culpado principal de todos os problemas da Europa passou a ser apenas um e não anos de politicas e de políticos errados, e não a submissão total aos mercados económicos aos quais sacrificaram os valores solidários sobre os quais tinham erigido a União…

A tensão acumulou-se, mas a bolha não rebentou, e as coisas arrastaram-se, numa agonia europeia que marcou o seu declínio enquanto outras potências emergiam…

Devido ao facto de manter a sua indústria no seu território, de não ter deslocado as suas fábricas que assim com os respectivos impostos e postos de trabalho beneficiaram os locais para onde foram e empobreceram os locais de onde tinham vindo, devido ao facto dos seus produtos serem de qualidade e altamente cotados quer dentro mas sobretudo fora da Europa a Alemanha continuou rica e a enriquecer ao passo que as outras nações do continente se abeiravam de uma penúria sem igual em muitos séculos, estas nações de uma forma inicial propuseram á Alemanha que distribuísse essa riqueza de uma forma solidária (lembraram-se então do tal espírito solidário que também elas tinham ajudado a enterrar em prol da ditadura dos mercados, do consumo desenfreado…), mas a Alemanha recusou, contrapondo com mais medidas económicas já comprovadamente falhadas que, dizia, iria tornar a Europa mais uma vez próspera, mas que servia apenas como uma espécie de “areia para os olhos” dos seus vizinhos…Estes subiram o tom e em vez de proporem começaram a exigir tal redistribuição de riqueza, mas a Alemanha manteve-se inflexível…A tensão subiu para níveis insustentáveis, os ressentimentos tornaram-se explosivos, e como as populações das nações empobrecidas se mostravam cada vez mais revoltadas, dando origem a vários motins de fome, os governos em segredo uniram-se entre si e decidiram intervir muito para além da esfera política…A cobiça pelo novo “el dorado” que estava ali bem perto e ao mesmo tempo demasiado longe cegou pois os europeus, já insensibilizados por demasiados anos sem valores, prontos a seguirem quem quer que fosse desde que lhes restituíssem a prosperidade desaparecida…

Para a jogada ser perfeita havia que fazer o resto do trabalho entre as populações das nações arruinadas, sendo que nos media, na Web, por todo lado uma campanha foi feita para diabolizar o novo alvo, resgatando e exibindo velhos documentários do tempo da guerra, discursos do tempo de guerra que comparavam aos mais recentes e assim procuravam mostrar que a Alemanha tinha caído em velhos pecados, nos pecados que toda a gente temia, isto durante vários meses, até que as populações se mostraram suficientemente manipuláveis para essa intervenção, aliás, até entusiastas por uma intervenção que iria colocar um ponto final nas ambições alemãs…

Depois só foi preciso arranjar um mero motivo que caísse bem diplomática e historicamente…

E foi assim que a Alemanha se encontrou novamente debaixo de fogo, novamente invadida, opondo uma feroz mas inútil resistência aos invasores que eram em maior número e levados pelo desespero…

E foi assim que aqui chegámos, a este dia em que o parlamento alemão mais uma vez vai cair…

Mas ao passo que no fim dessa guerra as perspectivas eram risonhas à Europa pela sua reconstrução, agora são más, para não dizer péssimas porque além de não haver dinheiro para a reconstrução, no meio de tudo isto demos cabo das ultimas indústrias decentes que ainda funcionavam nessa mesma Europa…

O que nos espera é um cenário medieval onde viveremos de esmolas das potências entretanto predominantes, e cada estado se irá dividir em pequenos estados por serem insustentáveis como grandes estados, é um regresso de facto aos tempos medievais que tinham sido previstos por alguns mas a que ninguém prestou de facto atenção…

O que resta será pois o fim da Europa, desta vez definitivo e não meramente transitório…

E tudo porque nos esquecemos de várias lições, tudo porque apagámos a história, sendo que a maior e mais pragmática lição da historia é que ela tende a repetir-se especialmente se a esquecemos…

Porque, como habitantes do continente onde começou a primeira democracia do mundo, deveríamos saber melhor do que qualquer outra gente a forma de manter e preservar a democracia…

Há povos que entram no ocaso por motivos que lhes são estranhos, mas nós entrámos apenas por culpas próprias, por uma política de irritante vistas curtas, de pensamento a curo prazo que por isso nos custou o futuro…

Os poetas ou os líricos dizem que o amor é o único sentimento que dura para sempre…

Os pragmáticos ou os cínicos a esta frase acrescentam o ódio…

Basta pura e simplesmente que estejamos predispostos a tal…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 01/12/2011
Código do texto: T3366880
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