Disseste-me Um Dia…(versão alargada e profundamente alterada…)

Crónicas de um tempo que espero que nunca venha…

A situação arrastava-se há demasiado tempo, não havia uma boa saída para ela, apenas a menos má, mas não me atrevia a ela por Ti…

E assim vivia imerso em mim desde que o que restava do meu mundo ruíra por completo…Só não se extinguira, só não eram cinzas de facto porque Tu eras os escombros, eras o que restava de mim, e ao passo que a partir das cinzas temos que começar tudo de novo, dos escombros é possível uma reconstrução, ou pelo menos podemos sonhar com ela…

Mas os dias arrastavam-se e Tu não me libertavas…Vias que estava desorientado, em conflito, a lutar contra diversas memórias de um passado algo ainda demasiado presente e contra um presente que parecia ter vindo de há uns séculos atrás, que tinha vindo de uma parte da história que todos temíamos, mas que se voltou a repetir, viste essa luta que se arrastava há demasiado tempo, percebeste no meu olhar uma vontade de ir crescente, de fazer coisas que ambos não queríamos, mas que eu tinha mesmo que fazer, sendo que o único obstáculo para tal eram as recordações desse passado e Tu…

Mas ao passo que as recordações podem ser ultrapassadas por acontecimentos do presente, não te poderia nem nunca iria jamais ultrapassar, e por isso ficava em silêncio durante demasiadas horas na soleira da porta da nossa vivenda, ouvindo os sons distantes que me esperavam, mas aos quais tu me impedias de chegar, não que mo pedisses, mas porque eu sabia que ia contra toda a tua vontade silenciosa, contra todos os teus princípios morais éticos e civilizacionais…apesar de muito possivelmente nós sermos os derradeiros detentores de tal…

E por isso enquanto o resto do que fora o mais belo sonho humano se desmoronava por completo à nossa volta e se transformava num enorme horror, eu limitava-me a ouvir esses sons e a esperar secretamente para que nos batessem à porta, altura em que nossa sobrevivência faria com que tivesse mesmo que intervir, quer mo autorizasses ou não…

Mas no entanto desde que tudo começara que me limitava a esperar e a desesperar, num crescendo de angústia que dias antes tinha atingido o seu apogeu…

E no entanto, apesar de tal cenário ter sido previsto, apesar de estarmos todos alertados para a sua eclosão, quando tal apareceu não lhes demos a verdadeira importância, menorizámos tal, até que quando nos apercebemos do que estava a acontecer, do que estava em causa era tarde demais para o evitar…

E tal veio por ondas, que inserimos na normalidade, sem prestarmos atenção ao primeiro som dos tambores…

Numa primeira fase a Europa esqueceu o espírito solidário do pós-guerra, em que todos ajudaram todos à reconstrução que se seguiu à última guerra e deram de seguida origem a uma pequena união económica entre nações outrora inimigas, uma união económica que se foi estendendo para outras nações do continente e que depois, mais do que económica, essa união começou a ser social também…

Surgiram então belas leis onde a preocupação legitima com os seus cidadãos eram um facto e não uma mera declaração de belos princípios humanistas, uma espécie de utopia onde a prosperidade económica andava de mãos dadas com o bem-estar dos cidadãos, sendo que por isso que o nível de vida, a qualidade de vida de muitos milhões, largos milhões aumentou de uma forma nunca vista na história do mundo…E por isso se começou a sonhar mais alto ainda…começou a sonhar em abolir as fronteiras, na livre circulação de pessoas e bens, em leis comuns de todos os tipos onde se privilegiava acima de tudo o bem estar dos cidadãos…e nessa Europa todos os membros eram ouvidos, todos os países escutados, e mesmo os que tinham menos força económica ou demográfica eram ouvidos, e as grandes decisões da União tinham em conta todos os pontos de vista e tentavam o equilíbrio entre todas as sensibilidades, entre todos os pontos de vista…E sim, tal foi possível…e por isso a ambição do sonho aumentou, e até se começou a falar numa Europa federal, com um governo único…Os regionalismos, as marcas de cada povo seriam respeitados, mas passaríamos a ser um único país em todo o continente, bem à imagem dos Estados Unidos da América, mas ao passo que este tinha nascido num território novo com relativamente poucos habitantes originais, a nossa Federação assentaria no continente onde a civilização era mais antiga, onde as diferenças e os ódios que faziam com que o continente tivesse guerras periódicas, na Federação tudo seria esquecido em prol do bem comum…

E foi então que os tambores começaram a rufar quando começámos a dar importância ao material, ao monetário esquecendo quase por completo o resto…políticos algo idealistas e sensíveis aos seus concidadãos deram lugar a tecnocratas frios que percebiam de facto de números, mas de nada mais, aos quais faltava uma sensibilidade, um tacto social que era visto como uma excentricidade, porque o que importava era potenciar o capital a todo e qualquer custo…Se a prosperidade fosse uma constante, tal não iria constituir um problema grave, mas está nos manuais que crises económicas cíclicas tendem a aparecer, e por isso quando apareceu a primeira a sério, os valores solidários caíram por terra de vez e surgiram politicas discriminatórias entre os mais e os menos ricos, entre os mais e os menos poderosos, quando era suposto sermos todos iguais…Como o espírito solidário tinha sido esquecido na voragem económica, a resposta da União foi render-se aos bancos, às bolsas, aos mercados satisfazendo estes mas condenando vastos milhões à miséria, uma miséria desconhecida na Europa havia muitas gerações…E com esta descriminação se abriram velhas feridas, velhas questões nacionalistas que todos pensáramos mortas…Uma tenção crescente tomou conta dos políticos, e dos cidadãos comuns, e todos recordámos as historias que todos tínhamos na família, histórias de ódios entre povos actualmente demasiado ligados entre eles…E esses ódios, essas questões apareceram para não mais desaparecerem…A Europa sobreviveu, mas a semente da destruição estava no seu interior, só esperando uma oportunidade para ver a luz do dia…

Mesmo quando esse momento chegou, não reparámos nele…embora fosse bem claro para um observador mais atento…Quando os meios de comunicação ainda funcionavam, as primeiras histórias que chegaram até nós pareciam meras revoltas locais, mas depois a coisa começou a crescer a um ponto tal que de meras regiões e regionalismos envolvidos passaram a estarem nações e os nacionalismos que todos pensávamos extintos…a tal semente que falei um pouco atrás…

Quando o exército da União mandado para debelar essas revoltas se dividiu e se transformou em exércitos de uma Europa que pensávamos anacrónica, começámos a perceber que o que tinham previsto alguns sábios anos antes estava mesmo a acontecer…

Os poucos políticos com algum tacto que ainda restavam ainda defenderam que o retorno às velhas fronteiras seria a solução para evitar a hecatombe, mas as coisas andaram depressa demais, o exército sendo europeu estava espalhado por toda a União, povos diferentes coabitavam com outros diferentes, lado a lado com a mesma farda à qual tinham prestado um juramento que deixou de fazer sentido…E como o exército era global estava em todos os países da União, por isso a crise se instalou em todas as nações, e por isso era inútil restabelecer as tais fronteiras pois o inimigo estava dentro das fronteiras…

Quando os tais conflitos latentes em alguns políticos e em demasiados cidadãos passou para os membros do exército da União, quando se dividiam nos quartéis por nacionalidades, quando mais uma crise económica colocou um fim definitivo ao que restava da prosperidade, o destino do continente passou a estar traçado…Porque em tempos desesperados não são os políticos que impõem a ordem, são quem tem a força bruta nas mãos…

E assim um acto isolado, um incidente entre soldados de diferentes países mas da mesma unidade redundou num pequeno banho de sangue no seu quartel, a aldeia global fez o resto, e mais depressa do que leva a contar as imagens chegaram a todo o lado graças à auto-estrada da informação que nos tinha levado tão longe mas que naquele instante nos levou ao inferno…

Em quase todo o continente, onde houvessem unidades militares mistas as revoltas estalaram e de repente todo um continente estava em chamas…

A situação piorou ainda mais quando as tropas de cada nacionalidade tentaram voltar ao seu país e foram barradas por tropas do país onde estavam e que por isso eram em maioria...

Depois o caos passou às ruas das cidades, os paióis foram assaltados a guerra passou a ser total e não somente de militares, pois em cada nação se deu uma caçada ao estrangeiro…devido a politicas globais de emigração sem limites, por cada nação havia imensos “estrangeiros”, muitos deles em cargos invejados pelos naturais dessas terras e que se tinham visto ultrapassados pelas maiores qualificações dos tais “estrangeiros”…Ou então, como no caso das nações mais ricas, os “estrangeiros” mais pobres e que desempenhavam tarefas que os naturais não queriam por serem demasiado humilhantes para serem feitas por eles, de repente lembraram-se que esses povos estavam a ocupar postos de trabalho de desempregados, que acomodados nos respectivos subsídios de desocupação nunca se tinham importado realmente com o assunto…

E assim todos mergulhámos numa guerra bem comum, tal como tinha sido a União que nos levara até ela…

Qualquer vestígio de civilização desapareceu muito depressa, a economia colapsou, a energia também e mergulhámos nas trevas, civilizacionais e energéticas, literalmente…

Quando todos se aperceberam que as nações tinham implodido, o instinto de sobrevivência fez com que surgissem bandos armados com diversas nacionalidades misturadas, cujo interesse maior, mais do que se matarem entre si passou a ser a sobrevivência comum…e assim começaram as pilhagens das povoações…

Habituados a séculos de civilização, um esboço de ordem começou a surgir localmente na figura de milícias que deveriam proteger cada povoação dos que as vinham pilhar, e assim todos os homens válidos passaram a fazerem parte dessas milícias que se envolveram em conflitos intermináveis pois os bandos de saqueadores eram imensos e estavam por todo o lado…Só os homens considerados fundamentais noutras tarefas eram dispensados das milícias, como era o meu caso, pois era professor e deveria transmitir o que restava do conhecimento aos jovens da minha região…

Mas quando o armamento pesado dos bandos destruiu a minha escola e a biblioteca e assim o que restava do conhecimento, eu deixei de ter utilidade e eu quis ir vingar a destruição do conhecimento…não me obrigaram a tal, deixaram-me escolher entre ficar em casa ou em ir com as milícias, pois para eles a figura de um professor com uma arma na mão era de tal ordem exótica que ao me darem a escolha pensaram que eu nunca iria com eles…

Enganaram-se…

Quem me impedia de partir eras Tu…

O irónico disto tudo era nós os dois sermos o espelho do que fora a União…: de diferentes povos a habitar num diferente país…Quando a livre circulação de bens e pessoas se tornou real a minha família mudou-se para a tua terra em busca de uma carreira melhor, e por lá se instalou, era ainda eu muito novo, mas como as leis tornavam de certa forma todos os membros iguais, eu passei a sentir a tua terra como a minha, perfeitamente integrado e socializado, tendo-te conhecido ainda nos tempos do ensino pré-universitário, onde os laços adolescentes foram crescendo e como adultos decidimos ficar um com o outro, nada demais, apenas mais uma história de amor entre tantas na União…Depois decidimos nós próprios procurar outras oportunidades, e escolhemos para tal um terceiro país onde nos assimilámos e prosperámos…Na altura de queremos termos filhos abateu-se uma crise económica sobre a União com tal impacto, que adiámos esse sonho, pois queríamos proporcionar aos nossos filhos as mesmas oportunidades que tivéramos, a mesma qualidade de vida, o que se revelou impossível naquele tempo, e por isso adiámos o sonho de descendência, de afecto, até novos e melhores tempos, que não chegaram a surgir, pois a crise passou a ser permanente e não meramente sazonal como tinham sido todas as crises monetárias até ai…não assumimos tal, fomos adiando o sonho, adiando, enquanto tu te dedicavas com mais afinco à tua carreira de economista, e eu à minha de professor, cada vez mais envolvidos nas respectivas carreiras e com menos tempo para nós…Outro casal teria naufragado, mas o que nos unia era demasiado forte e por isso fazíamos valer o tempo de que dispúnhamos um para o outro sem dispersão de afectos…

Quando tudo por fim se deu, a economia para a qual tinhas sido formada deixou de existir, e assim o teu papel social passou a ser o de uma dona de casa, auxiliando outras nas tarefas que havia para fazer, mas eu como professor, enquanto houvessem livros e alunos nunca deixaria de ser um professor…Até que de facto a escola foi destruída e os livros queimados, sendo que por isso os alunos foram para outro lado, e eu fiquei onde estava a remoer o ódio aos homicidas do saber…

O bando armado em questão que fizera tal, que ousara destruir o conhecimento, era chefiado por um antigo colega de faculdade que eu conhecera quando fora até à nação dele fazer uma especialização, priváramos o suficiente para o achar um amigo, e fiquei particularmente contente quando ele teve um cargo nesta terra, e fiquei contente dando graças à União por esta mistura de culturas…

Mas o homem amável e sensível que eu conhecera transfigurou-se com o conflito…Transformou-se num ser amargo que ao perceber que a sua nação, tal como todas as outras morrera, desistiu de voltar e dedicou-se às pilhagens, destacando-se pela invulgar violência que usava…

E por isso me debatia entre tantas recordações e a realidade…

Até que achaste que a luta, o conflito interior, que me consumia estava a ir longe demais, decidindo colocar um ponto final em tal quando

Disseste-me Um Dia…para ir…

E foi assim que abandonei o conhecimento que amava e que só existia na minha mente para me dedicar ao presente, onde a caçada aos nossos antigos amigos, conhecidos, ou simplesmente membros de uma União morta passou a ser o dia a dia de todos os dias…

Nestas alturas já ninguém se lembra do que nos levou até ali, ou prefere não recordar…

Mas quando ainda me dou ao luxo de lembrar, recordo que quando a União, a Solidariedade que nos caracterizava deu lugar a autistas e frios valores económicos que ignoraram a humanidade dessa União tudo começou de facto a acontecer…Depois bastou uma crise económica mais séria para precipitar no abismo uma população que esquecera esse humanismo, essa solidariedade, e por isso nada a separava do tal abismo…

Na altura chamaram a quem alertou para o perigo do fim da solidariedade “idealistas patéticos”, desprezando-os e fazendo a população desprezá-los…

Mas hoje vemos o que resultou de zombarem e de desprezarem esses “idealistas patéticos”…

As ruínas e o caos que substituiu a União mostra até que ponto esses homens eram idealistas e eram patéticos…

Pois…

Eu preferia mil vezes ter sido governado por um “idealista patético” do que pelos burocratas cegos que nos conduziram a isto…

Pois um idealista patético pode fazer grandes asneiras, que as faz sem dúvida, mas nelas não consta insensibilizar o seu povo, massacrar o seu povo ou conduzi-lo a tal como se nada se passasse…

Porque tudo se começou a perder quando tudo passou a ser uma mera questão de números e não de pessoas, a especialidade dos tecnocratas, isso dos números…

Um dos maiores criminosos do mundo disse um dia algo como

“Uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes são uma mera estatística”…

Quem sucedeu a quem imaginou a União composta primeiro por pessoas e só a seguir por números pensava como esse criminoso…

Vivam pois todos os “idealistas patéticos” e a União que com eles morreu também…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 30/11/2011
Reeditado em 30/11/2011
Código do texto: T3365081
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