Todo natal eu me lembro do meu amigo Vaca –Mão- Negra. Esse era o apelido que os garotos do bairro deram para ele. Vaca-Mão-Negra uma brincadeira que a garotada do bairro fazia. Quando a gente se encontrava, quem fosse mais lerdo para dizer Vaca-Mão-Negra levava uma tapona nas costas. Era uma brincadeira boba e um tanto violenta, mas nós nos divertiamos com isso. Principalmente quando era a gente ganhava e dava a palmada. Ele ganhou o apelido porque desenvolveu uma rapidez incrível para falar essa senha e ninguém conseguia ganhar dele.
O que tudo isso tem a ver com o Natal? Tem que tudo isso era uma tradição da minha infãncia. A brincadeira, o almoço do Natal, o cinema, o filme Marcelino, Pão e Vinho, e o trágico fim do meu amigo Vaca-Mão-Negra.
Eu tinha uma pena danada dele. Ele era órfão de pai e mãe. Morava com uma tia que não dava muita ou pouca bola para ele. Por isso ele vivia mais na nossa casa do que na dele.
Nossa família era muito pobre. Ninguém ganhava presente de Natal. Só quando algum filântropo(um político geralmente) distribuia brinquedos às crianças pobres é que a gente ganhava algum. Mas eu tinha uma mãe. E tinha irmãos e irmãs, tios e tios, que se reuniam no Natal para comer, falar do passado, reclamar dos outros, brigar, e no fim da reunião, jogar baralho ou ir ao cinema.
O Vaca-Mão-Negra não tinha família. Ele, ás vezes passava o Natal com a gente e no fim do almoço ía para o cinema conosco. Por isso, toda vez que me lembro do Natal, puxo junto a lembrança da história triste desse meu amigo que morreu quando ia fazer onze anos.
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Práticamente, todo ano era a mesma coisa nos natais da nossa casa. O almoço com todos os parentes reunidos, a comida de sempre: macarronada, frango assado recheado com farofa, um pernil que a mãe mandava assar na padaria, salada, vez ou outra um perú recheado com ameixas secas e abacaxi, que alguém trazia, o vinho barato(Sangue de Boi ou o vinho do Frade) algumas cervejas, e a inescapável garrafa de cidra para comemorar. Crianças não podiam tomar aquilo. Brindavam com guaraná ou Tubaína, mas depois que os grandes viravam as costas, lá íamos nós, sorrateiramente, beber as sobras das garrafas da “champanhe” de maçã que ficavam na mesa.
Durante o almoço era sempre aquela farra.Saim sempre aquelas lembranças do passado, rememoravam-se as histórias que um ou outro parente viveram juntos, gosavam-se os “micos”, as “pisadas na bola” que alguém dera, etc.
E no fim a inevitável briga. Invariávelmente ela acontecia ali pelo fim do almoço, depois que a maioria das garrafas estavam secas e a melancia ou o pudim de leite da sobremesa começavam a ser servidos. E eram sempre as mesmas pessoas que brigavam. Geralmente começava com uma nora, ou cunhado fazendo uma reclamação qualquer do marido ou da mulher, e a sogra saindo em defesa do filho ou da filha. De repente todo mundo estava brigando, se acusando e cobrando os outros por algo que alguém fizera ou deixava de fazer.
Mas tudo sempre terminava também do mesmo modo. Feita a purgação, desopilado o fígado, cuspida a bílis, descarregadas as máguas acumuladas durante o ano, nos encontrávamos novamente todos alimentados e satisfeitos e prontos para um novo começo. Então os adultos limpavam a mesa e logo aparecia um baralho. Jogava-se bisca ou canastra. Ás vezes arriscava-se um truco, aquele jogo barulhento e teatral. Os jogadores gritavam tanto que parecia que a briga começara outra vez. Mas desta vez eram gritos e desafios que sempre acabavam em sonoras gargalhadas.
Quando a gritaria começava, esse era o sinal que os pequenos esperavam para pedir aos seus pais um dinheirinho para ir à matiné do cinema.Parecia que o cinema também tinha entrado na nossa vida e passara a fazer parte dela como um cunhado, uma nora ou irmão adotivo. Era da família.
Pois ele fazia parte da tradição natalina. Terminado o almoço e começado o carteio, lá íamos nós para o cinema. Sempre com uma tia ou uma irmã mais velha acompanhando. E o filme também sempre era o mesmo: Marcelino, Pão e Vinho.
Esse era o filme das nossas tardes de natal, assim como o Jesus de Nazaré, filme mexicano com o ator José Cibrian no papel titulo era o filme das sextas- feira santas. Tradição é tradição. Se os filmes não fossem esses a gente chegava na porta do cinema e não entrava. Os donos do cinema até tentaram mudar os filmes. Trocaram uma vez o Marcelino por um filme com o John Wayne fazendo o papel de Gengis Khan. Era um belo filme, mas não pegou. No ano seguinte tiveram que voltar com o Marcelino.
Ninguém jamais me explicou, nem eu nunca havia pensado porque aquele filme era tão fascinante para nós, a ponto de todo ano irmos assisti-lo, como se fosse o complemento do almoço de natal. Era, na verdade um filme ingênuo e até muito arrastado. Contava a história de um menino, fruto de um romance proibido, que foi abandonado na porta de um mosteiro onde habitavam doze monges. Não conseguindo encontrar uma família para adotá-lo, os religiosos resolvem criá-lo eles mesmos. Mas o garoto, por falta de companhia da mesma idade e talvez por uma tendência inata que possuia, desenvolve uma grande imaginação. Ele cria amigos e situações imaginárias que vivem colocando seus atrapalhados tutores em palpos de aranha.
E assim o menino vai crescendo, se tornando o xodó dos monges e uma preocupação para os vizinhos, pois além de muito imaginativo, o menino é muito arteiro.
Um dia o garoto, na sua insaciável curiosidade, entra num velho sótão do mosteiro onde os monges o haviam proibido de ir brincar. E como o proibido sempre aguça mais a curiosidade, ele entra no velho e poeirento sótão, onde encontra um crucifixo em tamanho natural. Sua imaginação logo se põe a trabalhar. Para ele trata-se de um homem de verdade que está pregado naquela cruz. Ele sabe quem é o homem pregado na cruz. Fica com pena dele, das suas feições sofridas, feridas, dilaceradas. Parece estar faminto.
O menino começa a conversar com ele. Depois lhe traz pão e vinho. Ganha então o apelido: Marcelino, Pão e Vinho. É o apelido que o seu misterioso amigo lhe dá. E toda vez que ele aparece no sótão para conversar com o seu amigo, ele desce da cruz e os dois batem longos papos. Seu amigo é o chefe lá no céu. O menino pergunta por sua mãe, que os monges diziam estar lá. Pergunta se ela é bonita. O amigo lhe diz que não existem mães feias. Ele expressa o desejo de conhecer sua mãe e ficar com ela. O amigo se compromete a realizar-lhe esse desejo.
Quando ele conta para os monges sobre o seu misterioso amigo que desce da cruz para conversar e comer com ele, os monges naturalmente tudo colocam na conta da imaginação de uma criança. Resover checar a história e escutam as vozes do menino e do amigo a conversar. O amigo diz para ele se despedir dos monges que ele agora iria se encontrar com sua mãe.
Sentindo que aquela fantasia estava indo longe demais eles resolvem tirar a limpo aquela história. Invadem o sótão para ver quem era aquele misterioso personagem. Então vem a surpresa: no velho sótão, onde o menino tinha entrado para falar com o amigo, eles só encontram a cruz, sem o corpo que estava pregado nela. E o menino Marcelino também havia desaparecido.
Hoje eu consigo entender a mensagem que o autor dessa novela religiosa quis passar. Se a curiosidade de Adão e Eva, por um lado fez perder a espécie humana, a inocência de uma criança, por sua vez, pode salvá-la. Para entrar no Reino dos Céus é preciso ter a alma de uma criança, disse Jesus, por sinal o misterioso amigo do menino Marcelino. Precisamos acreditar na bondade humana e no poder de Deus. Acreditar sem precisar de justificativa. E na virtude da família simbolizada pelo amor de mãe.
Marcelino Pão e Vinho é um glorioso hino à caridade, á inocência e ao amor. Virtudes que nenhuma doutrina, nenhuma teologia,por mais elaborada que seja, é capaz de inspirar.
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O meu amigo Vaca-Mão-Nega morreu afogado numa lagoa que existia no Rio Tietê, onde nós costumávamos ir nadar depois da escola. Eu não estava lá nesse dia, mas um dos nossos amigos ouviu ele dizer, antes de entrar na água, que estava com uma baita saudade da sua mãe.