Rita-Reino-Fio-Roda

A vassoura corre o chão. O tacho borbulha doce. A voz desafina esperança. Gritos espalham madonismos, juízos. Ela crê em novelas; não ouve o aparelho altíssimo. Ai, paz sonora!

Mãos finas fazem-nos agüentar. O tempo nos ensina todo o propósito debaixo dos céus, como prega Eclesiastes. Qual é o tempo de minha rainha-avó? O tempo de vida ou de morte? Quantos dias dobraram-lhe anos ao infinito? Sua presença. Com ela desfio vida, sentidos. Talvez na cronologia gregoriana, seus noventa anos, seis meses e vinte dias, não deram conta de significar-lhe a vida. Fico acreditando: a eternidade, além de estar no céu, também vem se mostrar na terra.

Ela começou velha para mim. Quando nasci, tinha sessenta anos. Já usava coque nos cabelos de Rapunzel. Claro, era duas vezes viúva, cabelos não mais teciam redes.

Visitava-nos de tempos em tempos. Ia embora deixando alagados os horizontes. Um dia, veio para nossa casa. Montou um lar nos fundos, uma cassinha romântica e simples. Da janela, primaveras brotavam. Nos três pequenos cômodos construiu um reino. Dez passos distanciavam a porta de seu palácio e a cozinha da casa grande. Visitá-la era dar-lhe honrarias.

As horas mais enlevadas que vivi com Vovó, na impaciência da juventude, habitavam os instantes de visitas à casa dela. Fugíamos de lá, tínhamos ocupações: “com Vovó naquela falação o que ganhar?”

Ganhei o infinito de sua presença em meu coração. Doente ela, molenga na cama, eu brincava com seus pés limpinhos e brancos em curvas. Então assim narrava: “Havia, minha fia, uma rainha e um rei que queriam casar a princesa. O reinado era grande demais, muitos eram os candidatos, por isso eles tinham que vencer todas as provas...”

Eu morava noutra cidade. Mas quando voltava era o seu abraço, o agudo colo da felicidade. Iria intimamente escutar e interessar-me por suas conversas. A mãe de mãe como quem sustenta e gira a linha na roda a me destinar o sonho de fiar também. Ao ver-me de volta, repetia a definir-me: “tomara que chova logo, lá pras banda de onde eu vim, que é pra apagá os meus rastros e ninguém lembrá de mim”. Em inúmeras estórias, tive graça de pousar ouvidos de melodias; afinavam meus enganos, regiam cabelos brancos de vovó, reafirmavam a vida no inventar...

Vovó mentia muito: acusava a ajudante de coisas absurdas; sentia-se perseguida; irritava-se com ousadias das netas. Chateava o marido da filha. À vista estampava suas antipatias.

Vovó mentia além, mentia a arte jamais publicada; criava como quem finge acreditar; na construção que refaz o tempo das coisas e dos sentires. Teve dois maridos, aos treze e aos vinte e cinco anos, e viveu longos anos só. Do primeiro ficaram-lhe muitos filhos, que pediam pais e irmãos. Casou-se em seguida: -“O Gumercindo era bom demais, não podia beber, bebia e punha a família pra correr, dormir debaixo de árvores... depois, coitado, ajoelhava pedindo perdão”.

Moça nova enviuvou-se de vez. Nômade matava saudades de filhos, de netos, de bisnetos. Que lembrança dos maridos! Em sua doença, findos dias claros e escuros, a névoa de seu olhar gritava por eles, gritava o ininteligível. Explodia medo pavoroso de cobras. Na imensa solidão, agarrava-se à vida, (como uma criança em campo de brinquedos). “Tudo Deus, tudo, menos tirar-me daqui, quero tempos de perfume, de pó-de-arroz e comemoração do dia de meus anos.”

Foi-se. Vovó se foi. E uma ciranda de lágrimas vive em meu rosto a saudade dela. Aquela mulher-criança que conhecera velha e me contava história de vida inteira, se fora. A água que teima em meus olhos, sente é falta do que não ouviu com zelo, um pesar profundo das histórias não memorizadas.

Tudo se refaz na alegria de ter tido seu colo. Nunca outras mãos ternas e firmes acariciaram-me a alma enovelada. Ela está no sofá da casa grande: deito com rio-riso em seu abrigo; a fragilidade e a elegância dos movimentos vagueiam sortes por minha cabeça. Meu Deus era o silêncio; era o colo inenarrável daquela anciã, daquela humanidade boa e má, completude para mim. Eu pisava importante e necessária: Vovó é a mulher de minha vida; eu, sua neta: princesa de sua estação primavera.

Hoje, tenho dela uma boneca de gesso que lhe dei nos meus vinte e poucos anos; a menininha está sempre num lugar soberbo e diante dos olhos.

Luiza é sua bisneta, nunca a viu, a ama simplesmente e fala sobre ela lá no céu. Luiza tem três anos. De vez em quando diz: “Tia, vamos abraçar a Vovó Rita”.

Neusa Azevedo
Enviado por Neusa Azevedo em 26/11/2011
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