DO LADO DE DENTRO

Abriu o armário. Entre outras possibilidades, escolheu a primavera estampada numa saia rodada. Estampou na cara um sorriso antes de chegar ao espelho. Passou um batom cor-de-rosa antes de sorrir. Antes do batom escovou os dentes e antes dos dentes tomou um banho e antes do banho comeu geleia de uva; colheradas no pote. A colher ficou na pia. Cuidaria da louça quando voltasse — a casa poderia esperar. O inevitável era estar fora, vestida de primavera, lábios cor-de-rosa e dentes escovados e o pote vazio. As formigas não tomariam conta da casa se ela se ausentasse por algumas horas. A louça não se acumulara ao ponto de atrair ratos enquanto estivesse longe. Os ratos nem se dariam conta de que saíra porque não pensava demorar. Seria rápido. Apenas a urgência de estar fora vestida de primavera dentro de uma saia rodada. Não levaria conta de luz nem de água ou telefone, fila alguma a faria demorar, rato algum invadiria sua casa e formigas não se atreveriam a carregar seus restos. Por que tudo seria rápido. Por que não se dera o trabalho de tirar o carro da garagem nem de se habilitar. O preço do combustível não serviria de desculpa para não fazer o que tinha de fazer. O congestionamento não era álibi porque não havia um chefe com quem se desculpar. Não havia um trabalho que a fizesse despertar. Um despertador para desligar. Cafeteira fumegando. Crianças vestidas. Distribuição de bons-dias. Roupas a coser. Retalhos para juntar e formar uma vida. Brincar de quebra-cabeça até as crianças adormecerem. Ou um cão a castrar. Um vizinho gritando. Um gemido de amantes. No andar de cima. Não havia. Nada que a fizesse desistir. O tempo não correria tão rápido para que tudo surgisse assim tão de repente enquanto estivesse fora. Assim que fechasse a porta nada daquilo seria capaz de se materializar. Seria inútil esquecer propositalmente o dinheiro dentro da carteira que ficara sobre a mesinha de centro, os quais não faria uso quando realmente estivesse lá fora, abrir sorrateira a porta, com todo o cuidado para que a chave não fizesse barulho, pé ante pé, porque lá dentro, como sempre, haveria apenas ela.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 25/11/2011
Código do texto: T3354987
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