Recordações superficiais
Já era tarde. Sua frágil inocência a tornava deveras vulnerável. Escondia-se. Não por medo, ou receio. Apenas para não se mostrar. A olhavam com desdém, como se seus lábios fossem foices a cortá-los de ponta a ponta. Na casa, um lugar vazio. Não queria continuar ali, sentada, esperando que sua vida passasse em brancas nuvens.
- O conforto dessa posição me incomoda. Meus pés doem. Meu prazer cálido oculta minhas feições. Sou como uma massa amorfa de singularidades rasas. Minhas idiossincrasias tocam meus seios. Sei. Não sei. Sei-os de cor. Coragem.
- O quê você disse?
- Nada. A vida sempre me prega peças. Meu sorriso não a intimida. Pérfida inimiga. Amiúde é o leito em que regogiza seus mais puros pecados. Não farei, só para irritá-la. Eu, que achava ter encontrado nas Flores do Mal a cura para minha insegurança. Pobre Baudelaire. Mal sabe da incestuosa vida que o alude. Não o lerei mais. Fa-lo-ia se o amanhã não me esperasse. Mas lá está, com seus braços de maldade. Amanhã mandei minha saia para a lavanderia. Ontem irei pegá-la. Preciso me sobrepor a mim mesma.
Lembrava de suas antigas aventuras, tentando nelas encontrar alguma razão para que continuasse.
- Beijei. Devia ter uns doze anos. Não pela súbita necessidade que havia em meu subconsciente de morder aquela boca. Apenas beijei. Ela não queria admitir, mas gostou. Talvez sua excitação não esteja mais em seu corpo, apenas nas simples sensações de sua fétida lembrança. Ainda sinto. O gosto. A boca. Minto. Não sinto. A tenho. Se não a tenho, não me faz falta. Os prazeres da carne não me dominam. Apenas me completam.
- Você está bem?
- Estou. Até mais.
- Aonde você vai?
- Vou ser feliz e já volto.