DAS DORES DO CÉU
Maria das dores acordava cedo pegava o trem e ia pro trabalho
Maria do céu acordava com o sereno pegava a enxada e ia pra labuta
Maria das dores saiu do campo e foi para cidade grande vencer na vida
Maria do céu tratava os filhos com carinho e a terra com força bruta
Maria das dores cansou de levar coça do pai
E decidiu deixar aquela vida para trás
Com algumas mudas de roupa fincou o pé na estrada
Não quis fincar raiz num lugar que a vida nunca lhe deu nada
O caminho é longo quando não se sabe onde vai chegar
Basta um sinal da cruz e seguir a luz que é onde deus vai estar
O sol cansado de brilhar levava seu brilho lá para o oriente
Maria do céu, profissão de bóia fria
E na vida, pessoa de coração quente
Capinava a lavoura, punha roupa pra quara
E antes de dormir chamava os filhos pra rezar
Todo dia era assim, pro gado levava o capim
De charrete levava as crianças à escola
E depois seguia pra lavoura de café para carpi
Apesar da pobreza aparente a felicidade morava ali
Maria das dores chegava à noite acompanhada do silêncio
No seu quarto de pensão de vista para as fabricas ela olhava o céu
A cidade rouba estrela pensava ela diante daquele céu cinzento
Aprendeu que na roça ou na cidade sempre existe sofrimento
O sorriso se esfarela e a vida te carrega para os braços da favela
Às vezes a saudade lhe consumia...
Saudade é um vazio no peito que cicatriza sem deixar sequelas
Maria do céu passava a noite moendo café no pilão
Sentada à varanda olhava a luz que vinha da constelação
Tinha saudade de sua irmã Maria das Dores
Mas jamais abandonaria aquelas terras
Pois calos são setas que indicam a alma dos lavradores
Maria do céu, Maria sem véu que amamentava o seio do chão
Maria é filha da terra é o arado do campo e parte do nosso torrão
Maria das Dores adaptou-se à cidade grande
Tão logo se instalou numa pensão
Pôs placa de "há vagas" no seu coração
Em pouco tempo já se amigara com um cabra
Com profissão de aventureiro
Profissional do cigarro, profissional da cachaça e arruaceiro
Maria das dores suava de tanto trabalhar
Afinal eram duas as bocas que ela agora tinha que sustentar
Tinha noite que Maria das Dores nem podia contemplar a lua
Com o corpo cansado da luta e o rosto marcado das surras
Ela viu seu pai revivendo naquele que lhe jurou eterno amor
Por amor ela se anulou e se permitiu trocar o sorriso por sua dor
Maria do céu bem casada comemorava a colheita do café
O sucesso da entressafra foi comemorado com um forró de pé de serra
Sua única tristeza era saudade de Das Dores, sua amiga e irmã sincera
Do céu sabia que as Das Dores era ave aguardando o dia de migrar
Tem gente que nasce no campo
Mas só na lavoura de pedra é que consegue plantar
Na noite estrelada de nuvens avermelhadas Maria do céu chorou
O choro acumulado de mãos e pés calejados deus recompensou
Quem colhe a verdura no mercado não sabe o quanto foi suado
Maria do céu labutando sob o sol de cobertor
Na cidade Maria das Dores tornou-se escrava de seu companheiro
De manhã ela pelejava e a noite mesmo cansada ela era abusada
Transava toda noite sem prazer
Pois seu companheiro só pensava em se satisfazer
Foi um longo período de provação
Maria das Dores causadas de tanta humilhação
Maria das lagrimas de sangue jorrada de seu coração
Mas chega um dia que até o mais covarde dos homens reage
Maria das Dores saiu do campo pra fugir da violência
E esse seria o preço da viagem?
Resolveu que daria um basta naquela situação
Maria das Dores arrumou sua mala decidida a voar em outra direção
Mas seu companheiro coração posseiro não admitiu essa coragem
Disse que mulher nenhuma lhe abandona
Como pão amanhecido na bagagem
Com tom ameaçador pediu que ela desfizesse as malas
E fosse para cozinha preparar a sua janta
Mas Maria das Dores sorriu
respondendo que só pode exigir quem lhe banca
Seu companheiro enfurecido ao ser reprimido não esboçou nenhum sinal
Pegou de dentro da sua blusa um instrumento cortante
E a estocou diversas vezes com a destreza e frieza de um animal
Maria das Dores sentiu as dores doída de seu sobrenome
Maria, mais uma mulher desencarnada pelas mãos de um homem
Envolvida em sua dor ela sorria
Suas mãos ensanguentadas seguravam uma fotografia
Ela beija a foto de Maria do céu
E sentiu que a vida, dela se despedia
Pediu perdão ao seu pai mesmo que em pensamento
Entendeu que cada um trata seu filho da forma que foi tratado
Ninguém pode conhecer o gosto de um beijo
Se nunca se sentiu beijado
Enquanto seu companheiro fugia do flagrante covarde
Maria das Dores adormecia como um anjo
No silêncio inebriante do inferno da cidade
Do outro lado Maria do Céu admirava o horizonte
Sentiu um vazio no peito como se lhe faltasse algo no coração
Veio-lhe a lembrança da velha infância
Que ela cantava com Maria das Dores cantigas de violão
Há muito tempo não tinha notícia de sua irmã
E nunca mais viria àquela que foi sua confidente
Sua guerreira, companheira, seu reduto e seu divã
Maria do Céu ia seguir sua trilha lavorando sua vida
Sem jamais descobrir que a estrada é um caminho sem saída
Sabia que assim como outros da sua família que saíram para aventurar
Maria das Dores quando partiu, partira para nunca mais voltar
Quem parte de um lugar nunca reparte a saudade com quem fica
Maria do Céu sabia que as cicatrizes somem
Mas o corpo lembrará sempre que ali houve uma ferida
Assim como tantos que desaparecem nesse Brasil de meu deus
Maria das Dores é mais uma mulher na estatística da violência
Neste país sem memória sem passado e sem consciência
São tantas covas rasas em que adormece um pedaço da história
Que a família que faz prece logo esquece
Que aquele ente já morou no quarto de sua memória
Maria das Dores descansa em uma cova qualquer
Enquanto homens covardes passeiam por cima do corpo dessa mulher
Maria das Dores foi mulher, foi guerreira e hoje é esterco
Tem mulher que precisa morrer
Para poder viver nesta terra com o mínimo de respeito
Maria das Dores vive no céu
Já que na terra não teve o direito de tentar ser alguem
Maria do Céu vive na terra
Já que no céu os anjos assistem nossa dor sem sequer dizer amem
Das Dores, e Do Céu, caminharam juntas e se separam pelo pé
O homem nasce covarde
É por isso que deus faz com que no mundo tenha muito mais mulher
Neste cardume feminino algumas vidas vão vingar
Outras vão se deparar com violadores de pureza
Aquele que se apropria da sua consciência e a usa com subserviência
Depois de te possuir com estrema violência
Volta pra casa dá um beijo caloroso em sua mãe
Entra em seu quarto idolatrando sua raiva que é vista como fé
Pois o covarde por sua mãe tem obediência e constesta a ciência
Que afirma que mãe também é uma mulher
(Mauricio Ife)
Contato: maumau_cezar@hotmail.com
Essa poesia é meu repuldio à violência contra a mulher, por mais que façamos tudo ainda estará faltando muito para agradecer a cada mulher existente neste planeta.