Carta para a mãe

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“Todo mundo ama um dia,
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua historia
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
De ser feliz”
                 Almir Sater e Renato Teixeira

 
     Quando acenou no portão e viu o carro dobrar a esquina já sabia o que fazer na sua tarde de domingo cinzento e frio. Esperara tempo demais e sentia que, ou era agora ou sufocava... Tanta coisa para dizer! Tanto sentimento represado por anos! Finalmente havia chegado a hora de contar sua história, fechar dentro de si aquela parte da vida. Nunca pensou que seria fácil, mas precisava contar, escrever, como precisava do ar que respirava.
     No quarto, pegou um caderno e uma caneta há muito comprados para aquele fim e sentou à mesa da cozinha, um dos seus lugares preferidos em sua casa. Olhou demoradamente para o papel. Devidamente acomodada, com o coração aos pulos, experimentou a caneta e começou:


São Paulo, 12 de dezembro de 1982
    
Querida Mãe,

    Antes de tudo peço sua benção e peço perdão. Eu sei que me abençoa e ao seu neto quando faz sua oração ao acordar e quando vai dormir. Quando, de tanto sono e cansaço, não aguento fazer minhas orações eu penso: “minha mãe já rezou por mim e por meu filho... Me perdoe meu Deus.” E durmo aliviada.
     Também lhe peço perdão por não ter respondido nenhuma de suas cartas esses anos todos. Sei que meu irmão lhe explicou meus motivos e sempre lhe contou como ia minha vida. Nunca vou conseguir pagar em vida o amor e o cuidado desse irmão, pois sua família e ele foram a minha salvação, a mão de Deus no momento que nós mais precisávamos.
     Mas hoje eu preciso lhe falar que depois daquele dia infeliz, que a senhora sabe tão bem, eu desaprendi o que era alegria, minha mãe, só senti vergonha e tristeza. A maldade daquele homem me atingiu de um jeito que eu só pensava em morrer, me sentia culpada, fracassada, incapaz de ter uma família.
     No meu desespero, me perguntei mil vezes que mal eu fiz a ele, à sua família, para me tratarem com tanta desumanidade. Nossa vida juntos esses anos todos era como um filme que ia e voltava na minha cabeça e eu não conseguia pensar em mais nada a não ser naquela menina de 14 anos saindo da igreja debaixo de uma chuva de arroz, da festa no terreiro de casa e na alegria da senhora e do pai por ter casado sua filha mais nova, pois encaminhar os filhos na vida sempre foi uma missão que os dois levaram a sério e todos eles assim estavam.
     Lembro depois da minha tristeza quando tive que morar longe das nossas famílias, mas Luiz tinha arranjado um serviço no interior de S. Paulo, como administrador de um cafezal e aprendi que uma mulher sempre acompanha o seu marido, mesmo quando não é de sua vontade.
     Anos e anos trabalhando muito e juntando cada tostão e eu nunca me queixei.. Ele sonhava em comprar um pedacinho de terra e eu sempre apoiei seu sonho, que também passou a ser o meu. Cuidava de tudo, economizava e, quando precisava, trabalhava também na colheita de café, pois fui criada trabalhando, ajudando meu pai e a senhora no que podia, até me casar.
     Apesar de ele ser um homem seco, desatencioso comigo até, tenho boas lembranças daquele tempo. Tinha minha casinha para cuidar, um jardim lindo e uma horta que fazia gosto. Minha tristeza era a saudade da família distante, além de não ter conseguido engravidar, formar uma família grande como a minha ou a dele.
     Mesmo não sendo amoroso comigo ele me procurava sempre, como mulher. Usava-me sem nenhum carinho, virava do lado e dormia, roncando feito motor velho. Eu ficava ali encolhida, chorando, às vezes, mas sempre rezando para, daquela vez, engravidar.
     Então, todo mês quando vinham as regras, era como um dia de luto. Eu chorava e perguntava a Deus porque não tinha merecido a graça de ser mãe. Chorava quando via a decepção nos olhos dele e ouvia palavras que me feriam de morte... “Nem para ser mãe você serve... é seca...” ou “Eu não merecia o castigo de uma mulher assim.”
     Fiz tudo que me ensinaram para engravidar, realizar o meu sonho e o dele e nada. Anos depois, quando já me conformava, uma mulher abandonou um menino na colônia e eu o levei para casa. Implorei para ficar com ele, pois achava que era o jeito que Deus queria que eu fosse mãe e ficamos com ele, mesmo que a opinião de Luiz fosse de que “a gente não devia, pois não se sabe a procedência dele!”
     Nunca dei ouvidos pra essas coisas. Ele seria nosso filho e isso bastava. Realizar o sonho de ser mãe foi um milagre. Mudou minha vida, pois me devolveu a alegria da menina que um dia antes de casar ainda brincou com suas bonecas. Nosso menino cresceu lindo, saudável e quando Luiz resolveu vender tudo para voltar para nossa terra eu vibrei de felicidade, pois as nossas famílias finalmente conheceriam o filho que Deus nos dera.
     E tudo foi maravilhoso no novo recomeço. Estava perto da senhora, dos meus sogros, no lugar que me viu nascer e crescer. A tristeza ficou só por conta do pai não estar mais entre nós. Nosso menino vibrava de felicidade entre os avós, os tios e tias, os primos  e primas que o acolheram amorosamente, generosamente.
     Luiz não encontrou a terra que queria e o nosso dinheiro podia comprar e improvisou moradia nas terras do pai, esperando surgir uma boa proposta. Investiu o dinheiro em gado e a vida foi se fazendo de um jeito manso, leve. Ele trabalhava no campo, eu cuidava da casa, do nosso filho e fazia de tudo para deixar feliz aquela alma desassossegada, que parecia não querer parada.
     Antes de completar dois anos do retorno ele me disse que queria ir embora, que tinha sabido de umas terras baratas lá pra Goiás e ia arriscar. Mesmo eu dizendo que o menino estava na escola, que tudo estava direitinho, que a gente podia esperar um pouco mais por aqui, já havia decidido tudo, sem nem ouvir minha opinião. Nada do que eu dissesse naquele momento mudaria, pois até já tinha vendido o gado e acertado com um dos irmãos que ficaria com o roçado de inhame, feijão e milho, para depois mandar o dinheiro onde ele estivesse.
     Não teve jeito. Ele já iria comprar as passagens daqui uns dias. Chorei desconsolada e lembro que quando eu lhe contei a notícia da viagem foi uma tristeza só. Na véspera de comprar as passagens ele pediu para eu ficar na casa da senhora, pois viajaria a tarde e não queria que eu dormisse só com o menino.
     Ceei na casa de minha madrinha e tia enquanto a criançada dela e meu filho corriam em volta da casa, rindo felizes. Me deu um nó na garganta ter que abrir mão de uma infância assim para ele em troca da aventura de seguir um marido, mas não tinha nada de meu para me opor a esse destino.
     Na manhã seguinte, a tragédia. Encontrei nossa casa revirada e tudo que havia de valor desaparecido, inclusive minhas melhores peças de cama e mesa e coisas pessoais, como os casacos de frio. Chorei desesperada pedi ajuda para chamarem meu sogro e meus cunhados. Deu meio dia e ninguém apareceu e eu só chorava, sem amparo. Até que ouvi alguém dizer: “Tenha piedade, conte a verdade a essa coitada! Isso não se faz nem a um cachorro!”
     A voz indignada me despertou e eu quis saber do que se tratava. Um silêncio entre aquelas pessoas que me encaravam com um misto de horror e piedade, até que uma falou: “Ele foi embora com outra!”
Achei que não tinha ouvido direito, mas a pessoa repetiu e disse mais. Disse que todos sabiam da safadeza dos dois e que era do conhecimento e ( quem sabe)  da aprovação da família dele. Desmaiei de dor e desespero. Acordei com a senhora e madrinha do meu lado me fazendo beber algo amargo. Não consegui dizer uma palavra. A sensação devia ser o de enterrar alguém e ir à missa de sétimo dia ao mesmo tempo.
     Voltei para sua casa, mas não suportei ser o motivo do falatório de um lugar e de léguas além dele. Me desesperava e envergonhava ser apontada na rua, olhada com pena, me sentindo atração de um circo de horrores. Vim para São Paulo e meu irmão mais velho me acolheu com meu filho, me deu abrigo, conforto e a esperança de que tudo ia se ajeitar e até aí, nessa parte da história minha mãe, a senhora viveu e sofreu comigo.
     Longe daí trabalhei de sol a sol pensando que esse filho que Deus me deu não tinha mais pai e eu precisava ser tudo para ele. Quando o desespero e a vergonha de ter sido jogada fora como uma comida estragada batia, queria morrer, mas lembrava que ele só tinha a mim no mundo e arranjava forças. Eu não tinha o direito de abandoná-lo também.
     Nesses anos todos, minha mãe, não deixei homem nenhum se aproximar de mim, pois passei a desconfiar até da minha sombra. Já não era mais nenhuma menina, mas pretendente não me faltou, mesmo eu sem qualquer demonstração de vaidade, me importando apenas em estar limpa e apresentável, quando precisava sair. Nunca me interessei por nenhum.
     Mas “não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe” diz o ditado e tem razão. Dos que por mim se interessaram um, aos poucos, foi conquistando minha confiança e amizade. Conheci-o depois de quase um ano fornecendo salgadinhos junto com minha cunhada para sua lanchonete perto de um hospital. Viúvo, pai de duas moças formadas, já encaminhadas na vida, trabalhador e sério.
     Coisa do destino, mesmo. Conheceu meu irmão entregando salgadinhos numa lanchonete perto do Pacaembu e se interessou pela boa qualidade dos quitutes. Acertaram negócio e ficou nosso freguês. O amor ao Corinthians uniu ele mais ainda a meu irmão e sobrinhos e quando me dei conta ele já estava  frequentando nossa casa, levando meu menino, meu sobrinho e irmão para os jogos do Timão.
     Quando viu que eu era sempre tão arredia quis saber de minha historia e meu irmão contou. Ele teve a paciência de esperar o tempo certo para me falar do seu interesse por mim e me fazer acreditar que não estava brincando com nossas vidas.
     Conheci sua família e passamos a namorar. Todos aceitaram a mim e a meu filho com muito carinho e respeito. Me propôs casamento para logo, pois não precisávamos de um namoro longo e eu aceitei, mas antes precisávamos providenciar o divórcio. Enquanto um advogado se encarregava da papelada,  fomos morar juntos, pois ele  já estava só  há muito tempo e não quis esperar mais.
     Agora aconteceu um fato que mudou tudo e é por isso que estou lhe escrevendo.
     Eu estou grávida minha mãe ! Anos e anos achando que era estéril e não era!Aquele infeliz me faz sentir que eu era um nada e ele é que era o seco, o estéril ! Estou num estado de felicidade tal que não me aguento, chorando e rindo de alegria e querendo dividir isso com a senhora que tanto chorou e rezou por mim. Agora, sim, eu aprendi o que é a alegria de ser um casal, o que é ser amada, respeitada, desejada como mulher e como esposa.
    Assim que sair os papéis da separação eu vou me casar oficialmente e quero que a senhora esteja comigo e meu irmão, do meu lado. Se não puder, se prepare para quando eu for pra maternidade, quero que venha cuidar do seu neto ou neta.
     Sou feliz, minha mãe, como nunca imaginei que pudesse ser na vida! Se me desesperei, se quase perdi a esperança, lhe agradeço por não desistir de mim e me fazer lembrar sempre que tudo na vida tem um propósito e um fim.
     Daqui a pouco o homem que eu amo e seu neto, que está um rapazinho lindo, vão chegar do estádio. Hoje é final de campeonato e se o Timão ganhar vai ter muita festa. Abençoe essa minha família agora, minha mãe, e agradeça e peça perdão a Deus por mim por nunca me abandonar nem duvidar de mim, como eu duvidei dele.
     Na próxima carta vou lhe enviar fotos e da minha família, da minha linda casa, onde sou tão feliz. Mostre essa carta para minha madrinha e dê-lhe um abraço por mim.
     Fique com Deus, minha mãe, e obrigada por seu amor e sua proteção, sempre.
     Sua filha que muito lhe ama,

Nina