Não apenas meras ondas...- Versão longa e profundamente alterada

Olho um mar no fim de uma tarde de inverno, olho o mar porque me apeteceu evadir, mas dado que o meu local e horas de evasão estão indisponíveis, recorro ao que me permite esse estado de ausência plena, embora a realidade não deixe de estar presente, e as poucas pessoas que passam por mim nesta esplanada também não me sejam indiferentes, apesar de estranhas…Algo nos une de certa forma, por estarmos naquele lugar naquele momento, talvez o mesmo sentimento de evasão premente, não sei porque não dialogo com elas, limito-me a cumprimenta-las educadamente com o olhar, e este tipo de simpatia pode estabelecer laços de solidariedade ou mera simpatia momentânea, mas está longe de permitir saber o que vai na alma de cada um daqueles refugiados que procuraram o mar de inverno, o mais imprevisto de todos os cenários, por ser inóspito e por ser agreste tudo à sua volta, desde um vento cortante, a um frio avassalador, cenário que para ser ideal não falta uma ténue mas cortante chuva, sendo que pois no universo previsível humano só há um reduzido número de pessoas que prefira este cenário, os refugiados como eu, os loucos ou os surfistas…se calhar até há mais, mas francamente não me ocorre tal diversidade…

O que me apetece é discorrer meia dúzia de pensamentos e alinhavar memórias que andam dispersas, não distantes, mas dispersas…

A razão de ser um refugiado momentâneo prende-se com o facto de a alguns quilómetros deste local um acontecimento está a dar-se que irá mudar a minha vida para sempre, não vai alterar a minha forma de sentir, nem de pensar, mas vai alterar tudo o resto…

A alguns quilómetros daqui, num ambiente bem mais acolhedor a minha mulher está prestes a dar à luz o nosso primeiro filho, e se calhar único, pois a idade torna proibitiva e perigosa a vinda de mais alguns com a segurança desejada…

Sabemos que muita coisa vai mudar, mal soubemos quando ela se soube grávida, e sabíamos porque um filho quando é amado altera para sempre a vida dos pais…

Tudo correu bem durante a gestação, cumprimos juntos os procedimentos de futuros pais, com calma, mas na altura em que o parto se aproximava, e apesar de lhe ter prometido que estaria a seu lado, ela pediu-me para ir para o local onde me evadia desde sempre, porque sabia que eu me deveria evadir, sabia que eu tinha uma necessidade louca de evasão antes de aterrar para sempre…Porque a partir dali a evasão dar-se-ia por meros minutos, quando eu tenho uma necessidade intrínseca de horas de evasão, ou mesmo de dias…

Ela sabia porque apesar de estar com ela há algum tempo, apesar de a amar com todas as forças que tinha e que não tinha, eu tinha horas, tinha dias, em que me evadia, em que estava ausente, com a cabeça algures, ela sabia que eu precisava de partir, mas também sabia que eu voltaria, porque eu volto sempre ao que estimo…

Mas desta vez as coisas seriam diferentes…o amor de uma mulher até pode suportar as ausências do seu homem, mas uma criança jamais deverá ter como ponto de referência alguém cuja presença passa por ser aleatória…eu sabia que tal poderia acontecer, que a minha mulher faria as vezes de pai, e faria bem, mas uma questão de honestidade pessoal exacerbada, ou se calhar de altruísmo fez com que eu jurasse que o meu filho jamais teria um pai ausente, nem que essa ausência ausência me custasse mais do que se possa imaginar…Mas poderia e iria falhar certamente como pai, que os pais não são perfeitos e acabam sempre por falhar de alguma forma em alguma coisa, mas a ausência não seria uma dessas falhas…

O meu promontório ideal para as ausências era um local num campo sem luz humana, bem mergulhado na noite, e ficar perdido a olhar para o céu, com uma sede de céu que nunca seria satisfeita, mas as minhas angustias, as minhas dúvidas bem terrenas ficavam apaziguadas ou desapareciam mesmo de todo depois dum banho de estrelas, depois do meu pensamento se perder no meio delas e de regressar fortificado para a Terra…

Mas o parto ia ocorrer ao meio da tarde, e por isso tive que ir para o meu plano B, o meu segundo local de ausência, o mar, ou antes, a beira mar…

E por isso me encontrava naquela esplanada, a despedir-me da ausência, e a recordar o tempo, a recordar alguns episódios aleatórios dispersos nesse tempo…

Meia dúzia de tipos e de tipas vestidos com fatos térmicos desafiam as violentas ondas e vencem estas, o que me prende o olhar disperso…

São surfistas…

E começo então a recordar…

Recordo que pelo menos uma vez na vida fomos ou desejámos ser surfistas…

Olhámos os homens e as mulheres que desafiavam a lógica do mar num rectângulo estilizado e invejámos a suas proezas. E desejámos ser como eles, desejámos efectuar as suas proezas inacreditáveis, desejámos que nos olhassem quando saíssemos das águas para um merecido repouso com os mesmos olhos que nós olhávamos para esses seres que nos seus fatos especiais pareciam mais ter saído de uma prancha de banda desenhada do que terem saído de prancha do meio do mar…

Mas ao percebermos que jamais seriamos capazes desse equilíbrio marítimo, desse desafiar a lógica da gravidade e das ondas…optamos pela doce inveja e pela natural admiração por esses heróis insuspeitos…

E por isso nos limitámos então a continuar a olhar e a sonharmos que seriamos capazes de tal, sendo que no máximo as nossas proezas seriam nadar em ondas calmas, ou com a praia bem perto desafiar estas, na forma trivial e banal de furar as ondas por baixo escapando à rebentação, enquanto elas rebentavam sobre a maioria dos banhistas que ou não as sabiam furar ou serem levados pela rebentação era a sua forma de desfrutarem esse mar…E assim poucos segundos depois vínhamos à superfície das ondas, olhando vitoriosos os outros banhistas momentaneamente combalidos pela força desse mar que se tinham atrevido a desafiar, ao contrário de nós que usáramos um ardil para o vencer e para sairmos desse duelo impunes, embora fosse um falso duelo porque na prática o tínhamos evitado…Mas bolas, era a nossa maneira de nos sentirmos surfistas sem nunca de facto o sermos…mas éramos na alma, no espírito, porque ao contrario dos surfistas enfrentávamos a temperatura do mar bem gelada sem o tal fato maravilhoso que permitia o corpo quente…Não era bem assim, Havai surfistas que faziam tal sem fato durante o tempo em que nós enfrentávamos o mar, no máximo uma hora, ao passo que esses surfistas passavam longas horas no mar, e o fato era indispensável para evitar uma perigosa hipotermia, mas a mente humana por vezes caminha por certos caminhos da ilusão para se engrandecer quando é pequena, e este de me julgar superior aos surfistas por não usar o fato era um deles…

Mas eu fazia ao mesmo tempo parte de outro tipo de fascinados pelas ondas, fazia parte do grupo daqueles cujo fascínio pelo mar se limitara a ver este bem de longe por detrás de um ecrã, onde sonhávamos confortavelmente com a desenvoltura dos surfistas mas nas ondas do espaço, na figura de um homem prateado sobre uma prancha prateada que desafiava as forças malignas do universo, lutando contra estas forças do mal, contra essas ondas por metáfora evidente, e saindo vitorioso de tal…E isto passava-se por todo o vasto universo, o seu campo de navegação era pois esse universo, muito para além do que conhecíamos, muito para além da nossa imaginação, e por isso, por lidar com a tecla sensível de nos desafiar a imaginação nós sonhámos um dia ser como esse surfista de prata que ainda por cima tinha um drama de um amor desfeito ou meramente impossível a tornar este herói algo trágico e a dar-lhe uma faceta insustentavelmente humana, apesar de não passar de um mero herói de papel, de banda desenhada, papel distante mas que sem dúvida invejámos…

Até que começámos a envelhecer, e as nossas loucuras ou sonhos no mar ficaram nas intenções, e deixámos de ver os rapazes e raparigas das pranchas como uma espécie de heróis que desejávamos ser, mas apenas como gente que não tinha mais nada que fazer na vida, enquanto nós tínhamos uma vida, um emprego, uma família, um apartamento para sustentarmos, e o mar seria apenas para dar umas braçadas se estivesse calmo e a água com temperatura decente…enquanto o outro herói das ondas teria sido um devaneio dos tempos de garotos, sendo que agora só perdíamos tempo a ver essa figura se fossemos ao cinema com os nossos garotos e se fosse em sistema de alta resolução e com fabulosos efeitos, e veríamos porque os nossos filhos e filhas queriam que fossemos com eles e com elas e porque estávamos curiosos com esses efeitos que tinham custado tanto dinheiro a fabricar, sendo que víamos sem realmente vermos, víamos por rotina e não por paixão…

Mas isso são os outros e outras…

Eu ainda paro o carro de forma imprevista e dou um mergulho de forma inesperada apesar de saber que nunca serei um surfista de facto, mas não me rendendo a essa evidência, como nunca me renderei apesar de ir chegar um tempo em que o meu corpo só irá tolerar águas calmas apesar da cabeça ir continuar a sonhar com as grandes ondas e a forma de as vencer…

Eu continuo a sonhar com esse surfista do espaço, continuo a invejá-lo como da primeira vez que o vi num livro nos meus primeiros anos, continuo a sonhar com esse universo, tanto da forma como ele navega nele como na forma como os humanos irão um dia navegar, bem nas profundezas de um espaço que lhes é naturalmente hostil mas que eles terão que conquistar porque é da natureza humana a conquista das ondas, quer da Terra quer do espaço…

Eu continuo a sonhar com tudo isto enquanto faço também o que fazem as pessoas que passaram a achar que os sonhos são coisas de garotos ou, o mais tardar, de jovens que ainda não conheceram a vida a sério porque a vida a sério mata ou meramente enterra os sonhos…

Dizem eles, porque eu sei que estou errado, pois eu continuo a sonhar, eu continuo a cavalgar as loucas ondas que desafiam o meu físico, que desafiam a minha imaginação…

Eu continuarei a sonhar, mas já não a evadir-me, em breve irei com o garoto ao cinema ver o surfista na sua prancha e sonharemos os dois com tal, iremos os 3 ao mar, e se calhar o garoto passa do fascínio para a prática e dá mesmo no surfista que eu nunca ousei ser, mas em breve também lhe explicarei que a ausência quando apetece é coisa a mais, é uma excentricidade, um luxo que merece meros minutos mas não mais do que isso, e assim lhe terei contado a primeira mentira, mas uma mentira justificada pela necessidade de termos de estarmos sempre presentes com as pessoas que amamos, pois o preço a pagar pela ausência excessiva é uma solidão que ninguém deseja, porque eu tive imensa sorte em ter sempre alguém que me tolerava as ausências, mas isso era uma excepção e não uma regra, porque esse estado me levara a ser catalogado por uma série de gente que lidava comigo e que não me conhecia, julgando que essas ausências eram alienação e não uma mera necessidade de respirar…Porque eu amarei o meu filho com todas as forças com que amei, amo e amarei a minha mulher, e sei que eu e ela amaremos dessa forma o nosso filho, mas duvido que mais alguém lhe permite as evasões, as ausências que eu fui useiro e vezeiro, e por isso esse estado é algo que ele deveria evitar para seu próprio bem…

E por isso me despeço das ausências, em nome da coerência, me despeço de tudo, sabendo que só nas horas antes de adormecer terei esse espaço, perderei a faculdade de navegar nas ondas da mente, de me perder e de achar nelas, perderei em nome da humanidade, em nome de um ser que me merece por inteiro e não por meras partes…

Reparo então que entretanto a noite caiu…

Os surfistas desapareceram, a esplanada está vazia, as luzes apagadas, a iluminação vem do céu que deu tréguas e faz com que as nuvens se tenham afastado…Não sei se é pelo momento ou se o é de facto, mas este é o mais belo céu que vi em toda a minha vida…Sinto-me a evadir de forma irresistível, até que um toque no meu bolso indica que recebi uma mensagem…

Começou a minha maior viagem há meros minutos…acendo um cigarro, o último de todos, despedindo-me desta forma do meu eterno camarada das ausências, ao mesmo tempo que desço do céu para a terra, dando comigo a sorrir da forma única como sorrio quando estou ausente, um sorriso desconhecido a toda a gente mas que a partir de agora irei usar cada vez que veja o meu filho…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 09/11/2011
Código do texto: T3326431
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