MULHER LARGADA




Juca Manoel, na casa de enforcado, chegou falando assuntos de corda. Até Rita de Cássia desistir do almoço, clamando com a mão na gaforina:

— Chega! Chega! Não tolero mais. A minha cabeça arrebenta.

No lugar de desolada, desabafando. Juca Manoel, branco e pálido, estacou-se de queixo caído, embasbacado.

Chega!

Dedo dela atafulhado no nariz dele, erguido e tremente. Sabedor de tudo: agora chega.

Escapulindo, foi trocando de canto, vindo do agachado na taipa do fogão para a baldrame, dali para o jirau do batedor de roupas... Assim, espichando-se para fora, enquanto Rita de Cássia andava lá, voltava cá, fungando e lamuriando.

Destampatório tamanho, quando o Juca nem atina um controle. Raciocínio sem, logo sumido, mas a vontade só de ficar junto. Precisão de conversa, mesmo a cunhada não tolerando a verdade. Ou, por acaso, ele ali só compareceu com os fins de fuxicar na maldade? Longe disso, porque o fato é: “- Meu irmão é um espiritado; largar a mulher e faltar com os respeitos da família... Sumiu na quiçaça foi com aquela. Engambelou-se com a fulana, lógico que foi.”

— Mentira, mentira, mentira...

Em seguida, Rita de Cássia arremessou o prato na cristaleira, com rombos, cacos e outros gritos:

— É mentira. Ele não fugiu com ninguém. Ele é meu. Onde estiver, ele é meu.

As mãos abertas acalcando os peitos quase pelados, cravando as unhas, riscando com raiva o decote, minando o sangue.

Ora, ora, não vê quem não quer. Marido dela agiu com canalhice. E isso aí é ridículo, a tonta continuar caída pelo senvergonha. Patife, o irmão. Uma mulher desse naipe, largada na mão.

Mas largou.

Acontecido à luz do dia.

Quando será mais vantagem? Juca Manoel aqui se oferecendo, abalizando os restolhos, ajuntando cacos, entrando para ocupar o lugar que era do irmão ingrato? Ou iludir com um marido fugido, gastando tempo e desperdiçando choro?

Entrementes, Rita de Cássia não ouvia. Mirava para as unhas, o ensanguentado delas. Urrou fêmea, mais o bicho que a mulher. Traída. Onça do mato no sarobá, alongada ali por humilhante desprezo. Fera machucada no peito, um graveto de pau cravado, brinquedo de criança, quando só feriu por causa de ser acarinhado. A fêmea de macho à toa , vexada e sem palpite de como se safar do malfeito.

Fêmea, mas com a devida restrição. Porque fêmea de uma metade só, nascida sem as partes de parir. Mulher incompleta nesse pedaço, castigo de ser maninha.

Juca Manoel sabia da diferença. Porque ela corria o tempo e não dava à família o descendente. Janeiro emendando janeiro: toda espécie de promessa de santo, de raizeira, de simpatias, e nada. Marido espremendo. Ela, no atraso das regras, corria afoita com a notícia boa. Pressa no aviso. Pois o marido, ela desconfiava, mantinha um pé na casa e outro no boliche, desanimado de família com ela. Decepção só crescente, porque a barriga fraca sempre despejava abaixo:

"— Desceu hoje outra vez", confessava ao marido, cheia de remorso e escondendo os temores.

A cada episódio, espremida e rebaixada, via o marido largando de prosear, saindo para o quintal com desculpas de organizar os badulaques, conferir as criações. Um chocho difícil de disfarçar.

Sabe-se lá quanta hemorragia da gravidez. Depois, cessou. O marido recomendava para largar das preocupações com essa parte, porque tinha resolvido outra idéia para vir o filho.

Uma criança adotiva entrava nas questões. De qualquer forma, sobressaía era o agouro no casamento: fêmea devendo uma parte.

Depois, a sirigaita.

Sirigaita e feia. Mas com os adendos certos, onde o marido foi logo se engabelando com ela, ela já depressa arrumando a barriga.

O fato constatado, o povo correndo a notícia, os dois senvergonhas fugiram.

Juca Manoel, agora no terreiro dela, vem abeirar miudinho, chega repicando o passado, dando versões de recriminar o irmão fugido, sujeito capacho duma sirigaita, quem não chega aos pés da Rita de Cássia. Alega trecos e tererecos, só de caso estudado: joga verde para ganhar maduro, muito prestativo e cheio de dó.

Dó da condição dela, mulher largada.

Não que fosse o Juca Manoel traste do mesmo balaio. Porém, os planos dela, agora, são melhores aplainados. Retoma o almoço, picar couve, esmiuçar o frango, descascar a mandioca. Faca atrevida, anavalhada na destreza do manejo.

Dói o avexamento. Marido canalha, virado por vagabunda buliçosa.

Dói a natureza dela, faltando a parte mais melindrosa da mulher.

Confirma, para ela própria, os planos alinhados, contudo aqui o Juca Manoel aparente as intenções melhores.

Ali no jirau, tem as contas resolvidas e espia para cá, vendo o Juca se remoer. Direitinho com a vassoura, primeiro varre os cacos da cristaleira, depois dependura o avental e prende os cabelos.

Alívio no plano feito. Pois, destes uns quando se contam, as gentes desse caso bem parecido, difícil é entender quando uma mulher pode nascer com falta das partes importantes. É de se perguntar: isso lá é mulher para ser de homem?

Cerimônia nada: comendo do almoço, doravante todo dia esse costume de morar ali com ela e as coisas dela. Assim, tudo fica completo em casa.

Largada. Só e sem as intenções dos outros.


* Conto reunido no livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.
Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 09/11/2011
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