Não apenas meras ondas...

Pelo menos uma vez na vida fomos ou desejámos ser surfistas…

Olhámos os homens que desafiavam a lógica do mar num rectângulo estilizado e invejámos a suas proezas. E desejámos ser como eles, desejámos efectuar as suas proezas inacreditáveis, desejámos que nos olhassem quando saíssemos das águas para um merecido respeito com os mesmos olhos que nós olhávamos para esses seres que nos seus fatos especiais pareciam mais ter saído de uma prancha de banda desenhada do que terem saído de prancha do meio do mar…

Mas ao percebermos que jamais seriamos capazes desse equilíbrio marítimo, desse desafiar a lógica da gravidade e das ondas…

E por isso nos limitámos então a continuar a olhar e a sonharmos que seriamos capazes de tal, sendo que no máximo as nossas proezas seriam nadar em ondas calmas, ou com a praia bem perto desafiar estas, na forma trivial e banal de furar as ondas por baixo escapando à rebentação, enquanto elas rebentavam sobre a maioria dos banhistas que ou não as sabiam furar ou serem levados pela rebentação era a sua forma de desfrutarem esse mar…E assim poucos segundos depois vínhamos à superfície das ondas, olhando vitoriosos os outros banhistas momentaneamente combalidos pela força desse mar que se tinham atrevido a desafiar, ao contrário de nós que usáramos um ardil para o vencer e para sairmos desse duelo impunes, embora fosse um falso duelo porque na prática o tínhamos evitado…Mas bolas, era a nossa maneira de nos sentirmos surfistas sem nunca de facto o sermos…

Ou então, para aqueles cujo fascínio pelo mar se limitara a ver este bem de longe por detrás de um ecrã, sonhávamos com a desenvoltura dos surfistas mas nas ondas do espaço, na figura de um homem prateado sobre uma prancha prateada que desafiava as forças malignas do universo, lutando contra estas forças do mal, contra essas ondas por metáfora evidente, e saindo vitorioso de tal…E isto passava-se por todo o vasto universo, o seu campo de navegação era pois esse universo, muito para além do que conhecíamos, muito para além da nossa imaginação, e por isso, por lidar com a tecla sensível de nos desafiar a imaginação nós sonhámos um dia ser como esse surfista de prata que ainda por cima tinha um drama de um amor desfeito ou meramente impossível a tornar este herói algo trágico e a dar-lhe uma faceta insustentavelmente humana, apesar de não passar de um mero herói de papel, de banda desenhada, papel distante mas que sem dúvida invejámos…

Até que começámos a envelhecer, e as nossas loucuras ou sonhos no mar ficaram nas intenções, e deixámos de ver os rapazes e raparigas das pranchas como uma espécie de heróis que desejávamos ser, mas apenas como gente que não tinha mais nada que fazer na vida, enquanto nós tínhamos uma vida, um emprego, uma família, um apartamento para sustentarmos, e o mar seria apenas para dar umas braçadas se estivesse calmo e a água com temperatura decente…enquanto o outro herói das ondas teria sido um devaneio dos tempos de garotos, sendo que agora só perdíamos tempo a ver essa figura se fossemos ao cinema com os nossos garotos e se fosse em sistema de alta resolução e com fabulosos efeitos, e veríamos porque os nossos filhos e filhas queriam que fossemos com eles e com elas e porque estávamos curiosos com esses efeitos que tinham custado tanto dinheiro a fabricar, sendo que víamos sem realmente vermos, víamos por rotina e não por paixão…

Mas isso são os outros e outras…

Eu ainda paro o carro de forma imprevista e dou um mergulho de forma inesperada apesar de saber que nunca serei um surfista de facto, mas não me rendendo a essa evidência, como nunca me renderei apesar de ir chegar um tempo em que o meu corpo só irá tolerar águas calmas apesar da cabeça ir continuar a sonhar com as grandes ondas e a forma de as vencer…

Eu continuo a sonhar com esse surfista do espaço, continuo a invejá-lo como da primeira vez que o vi num livro nos meus primeiros anos, continuo a sonhar com esse universo, tanto da forma como ele navega nele como na forma como os humanos irão um dia navegar, bem nas profundezas de um espaço que lhes é naturalmente hostil mas que eles terão que conquistar porque é da natureza humana a conquista das ondas, quer da Terra quer do espaço…

Eu continuo a sonhar com tudo isto enquanto faço também o que fazem as pessoas que passaram a achar que os sonhos são coisas de garotos ou, o mais tardar, de jovens que ainda não conheceram a vida a sério porque a vida a sério mata ou meramente enterra os sonhos…

Dizem eles, porque eu sei que estou errado, pois eu continuo a sonhar, eu continuo a cavalgar as loucas ondas que desafiam o meu físico, que desafiam a minha imaginação…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 08/11/2011
Código do texto: T3324702
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