Tomara que haja sangue!

Juca sofria de um grave problema de memória. Se esquecia das coisas facilmente. Era preciso manter sempre ao alcance da mão o seu remédio, tomado religiosamente todos os dias e uma agenda detalhada de tudo o que deveria fazer. Se não tomasse o medicamento, remediaria com a agenda. Com o tempo, descobriu que repetir o que não podia ser esquecido, o ajudava a lembrar. Foi assim com o nome de Mariazinha. Quando ele bateu os olhos nela a primeira vez, nunca mais se esqueceu do nome daquela moça. Pois repetia sempre, antes de dormir, o nome de sua amada, e tinha ter lindos sonhos com ela. O namoro não durou muito, logo os dois já estavam casados.

O remédio e a agenda o ajudavam muito, mas por segurança usava a repetição em muitas ocasiões.

Juca saía cedo de casa, para ir à padaria. Mal abria o portão e começava: “Mariazinha quer pão. Tomara que haja pão quentinho. Tomara que haja pão quentinho...” E a falação seguia até chegar ao balcão da padaria.

Algum tempo depois do casamento, Mariazinha engravidou.

Teve uma gravidez tranquila, porém, já beirando os nove meses de gestação, ela acordou no meio da madrugada com desejo. Estava a ponto de ter a criança antes da hora de tanta vontade de comer chouriço. Sem dó nem piedade, deu uma cutucada por entre as costelas de Juca, que ressonava ao seu lado e disse: “Benzinho, pensei que teria nosso bebê sem ter desejo, mas acordei numa vontade de comer chouriço... Hummm... estou com água na boca! Tenho medo de não comer logo e o nosso filho nascer com cara de chouriço. Mamãe disse que se a gente não comer o que deseja na gravidez, o bebê corre o risco de nascer parecido com o que foi desejado. Deus me livre! Chouriço é gostoso, mas é muito feio!” Mariazinha cutucava Juca e ele sem falar nada só pensava onde ia arrumar aquilo, naquela hora. Mesmo com ela falando, ele cochilou e sonhou com um chouriço enrolado nos cueiros. Levou um susto! Não pregou mais os olhos e não houve meio que fizesse Juca se esquecer do tal do desejo, pois nem precisou repetir a palavra chouriço, Mariazinha mesmo se encarregou de fazê-lo. Pois falava o tempo todo que queria a tal da iguaria. E queria para logo!

Mal amanheceu o dia, Juca pegou o telefone e ligou para sua mãe: “Mãe, a Mariazinha tá com desejo de comer chouriço. A senhora sabe fazer?” Ela respondeu que sim, era para o filho dar um jeito de arrumar sangue fresco que o resto ela encontrava no açougue perto da casa dela. Juca precisava se lembrar disso, não poderia se esquecer. Segundo ela, no matadouro municipal encontraria o tal do ingrediente. “Tomara que lá haja sangue, meu filho” Juca desligou, nem se lembrou de tomar o remédio e nem de anotar na agenda a sua missão. Deu um beijo na esposa e saiu repetindo: “ Tomara que haja sangue, tomara que haja sangue, tomara que haja sangue...” Quando passou o portão, nem se lembrava mais para que lado ficava o tal do matadouro, tinha se esquecido. Saiu ladeira abaixo, dizendo sua ladainha.

Ao passar na porta de um bar, em plena manhã, dois bêbados trocavam socos e ofensas. Ele resolveu desviar, mas sua ladainha chegou aos ouvidos dos brigões. Um deles, disse: “Olha só, ele quer que a gente se esmurre até dar no sangue!”. O outro gritou: “ Ôh moço, já que não tem ninguém pra acabar com essa briga aqui, bem que você podia desejar que a gente se separasse, fica aí desejando sangue, não se deve desejar mal ao próximo! E você trata de mudar essa sua flação ai, senão vamos é partir pra briga é com você!” Os dois bêbados pararam de se esmurrar, se aproximaram e esperaram por uma resposta de Juca. Ele percebeu que aqueles dois que nem deveriam saber o motivo pelo qual estavam brigando. Das duas uma: acabariam se matando, ou partiriam pra cima dele. Não poderia desejar sangue, os pobres bêbados, tinham razão. Tratou de mudar sua ladainha para: “Tomara que separa, tomara que separa, tomara que separa...” Os dois brigões ouviram, deixaram a briga de lado, se sentaram de novo no boteco, e pediram mais uma. Juca seguiu seu rumo.

O sol já estava alto, Juca sentiu sede e parou em um quiosque para tomar um refresco. De vez em quando, ainda repetia a ladainha: “Tomara que separa, tomara que separa...” Bem na frente do quiosque, havia uma igreja e dela saia um cortejo nupcial. Um homem que estava próximo de Juca, ouvindo-o repetir a ladainha, retrucou: “ Como você pode desejar isso aos pobres dos noivos? Nem bem se casaram, você já fica desejando que eles se separem. É cada uma que a gente ouve... Você, como cristão, tem que desejar que saia de dentro dessa igreja outro casal tão feliz quanto esse!”

Juca ouviu em silêncio, e refletiu e percebeu que estava errado, era isso mesmo que tinha que desejar. Passou a repetir, freneticamente: “Tomara que saia mais um! Tomara que saia mais um!”. O homem lhe sorriu em retribuição e Juca seguiu adiante.

Seguia em linha reta sem rumo certo, repetindo: “Tomara que saia mais um! Tomara que saia mais um!”

Lá na frente, algumas pessoas seguiam de longe um enterro, Juca acabou por alcançá-las. Todos pensaram que fosse algum conhecido, ou mesmo parente do morto. Mas logo perceberam o que Juca dizia. Um deles se virou para nosso esquecido amigo e disse: “Você é muito estranho! Tem morrido tanta gente nesses últimos dias aqui em nossa cidade! E você ainda fica pedindo que saia mais um defunto?” Juca olhou com ar interrogativo, e o homem continuou: “ Você tem que desejar que não saia nada. Deus me livre! Tantas mortes!” Juca viu que a coisa mais sensata a fazer era pedir que não saísse mais ninguém, mais nada, como disse o homem. E substituiu a sua frase imediatamente: “Tomara que não saia nada! Tomara que não saia nada! Tomara...”

E foi adiante até se separar do grupo.

Perto dali havia um parque e acabou por entrar nele. No meio da vegetação, havia um andarinho danado de revoltado por estar com o intestino preso, se espremendo como podia por detrás de uma moita.

Quando Juca se aproximou, viu a cena, mas como estava tão concentrado em sua frase, nem se deu conta da situação, continuou falando: “Tomara que não saia nada! Tomara que não saia nada! Tomara...” O andarinho ouviu aquilo, e como estava com os nervos à flor da pele, pensou ser um insulto, levantou as calças e saiu de seu banheiro improvisado e foi ter com Juca: “Tomara que não saia nada, então? Eu ali sofrendo e você aí tirando sarro. Tem gente que gosta mesmo de curtir com a desgraça alheia. Vou te ensinar a respeitar o sofrimento dos outros! Venha cá seu escumungado de uma figa!” Quando Juca percebeu, já estava no chão levando pescoções e empurrões. A coça só não foi maior, por causa das pessoas que passavam no local e ajudaram a conter o raivoso.

Os tapas na cabeça fizeram com que Juca recuperasse a memória, e se lembrasse da encrenca que encontraria em casa, pois o dia já se findava e nada de sangue e nem de chouriço.

Quando chegou em casa estava sujo e amarrotado, o único sangue que trouxe, foi o que se acumulou em alguns hematomas, causados pelos tapas. Mariazinha que nem comentou o estado do marido, mal o esperou entrar, para dizer: “Amorzinho, não se preocupe, você demorou tanto que o desejo mudou. Nosso bebê não vai mais ter cara de chouriço. Desde que você saiu não paro de pensar em uma outra coisa!” Juca, fez sinal que ela esperasse e que não dissesse nada antes que ele bebesse o remédio. Correu, tomou o comprimido e voltou com a agenda e a caneta: “Fale querida!”

***O chouriço é uma iguaria que se parece com a linguiça. Leva na sua composição o sangue fresco de porco, carne e gordura, além de vários temperos.

Meire Boni
Enviado por Meire Boni em 07/11/2011
Reeditado em 08/11/2011
Código do texto: T3323051
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