Uma História Banal

Para o Dr. Fernando Piratelo.

Acordou com um raio de sol em seu rosto manchado.

Levantou-se debaixo da marquise onde esteve dormindo aquela noite e põe-se a caminhar pelas ruas do centro de Curitiba trajado em seus andrajos que fediam a urina, merda, suor, cachorro molhado e borracha queimada.

Nem se lembrava de quando tinha tomado uma ducha pela última vez.

Talvez na sua última internação à três semanas em que tinha fugido quando o caminhão estava entregando os pães para o café da manhã da clínica.

Sexto internamento. Todos foram um fracasso total.

Aos dezesseis anos experimentou a pedra. Aos dezessete a primeira reabilitação. Agora tinha dezenove anos.

Lembrou-se por um momento de seu pai e sua mãe. Não tinha um puto furado no bolso.

Caminhava em seu passo lépido e suas pernas de viciado a levavam direto para o Largo da Ordem.

Sua boca estava seca. Parou em um chafariz de praça e bebeu um bocado de água.

Quando se sentiu satisfeito continuou a andar misturado aos mendigos, bêbados & loucos da cidade. As pessoas passavam apressadas por ele. Algumas não o viam, outras fingiam e as demais o olhavam com repulsa e desespero e medo quando ele passava. Nada mais lhe importava. Precisava apenas de sua ração diária para tentar manter o aspecto humano. Ou que lhe restava disso.

Pediu as horas para um cabeludo com tatuagens que passou por ele e descobriu que eram onze da manhã. Essa era a hora do começo do movimento. Da função. Apertou o passo e chegou a um bar que acabara de abrir as portas.

O passador de sempre sentado num tamborete no balcão e tomava a primeira cerveja do dia. Quando o viu fez cara feia. Deu um trago longo no copo tulipa e sacou um cigarro do maço e o isqueiro do bolso. Camisa aberta no peito enroscado por várias correntes de prata. Anel de prata no dedo indicador da mão esquerda. Pulseira de couro e prata no pulso direito. Sapatos pretos de amarrar e uma calça jeans cara. Fazia duas mil e quatrocentas pratas por dia só vendendo aqui e ali. Homem de confiança do traficante. Lucro certo. Quando ele se aproximou o passador fez um esgar de nojo.

-O que você quer, ô Dentinho?

Não tinha mais nome. Desde que entraram nesse mundo de horror ele não tinha mais nome. Era apenas “Dentinho”.

-Me faz cinquenta, mano. Pra pagar daqui dois dias. Vou para a casa dos meus pais e lá eu pego o dinheiro e venho te pagar e...

O passador cortou a conversa.

-Porra, já vem mais um filho da puta, viciado, me pedir fiado de novo. Dentinho, você já me deve duzentas pratas, bicho. Assim quebra a banca. Assim o patrão não gosta e coloca os óculos na minha atitude. E se você não me pagar? Fico com cara de bundão?

Ele disse que iria pagar. Que teria o dinheiro dentro de dois dias e que ficasse tranquilo porque ele iria realmente pagar e toda essa conversa de gente que se perdeu no inferno labiríntico do crack. Disse que o passador iria receber nota por nota em quarenta e oito horas.

O passador bufou. Acendeu o cigarro e deu uma tragada soltando um halo de fumaça azul pelo nariz e pela boca. Uma viatura policial passou por eles e continuou seu caminho. Acabarem fechando negócio e o passador lhe colocou a mercadoria na mão. Teria quarenta e oito horas para levantar duzentos e cinquenta mangos.

-Nem um dia a mais, hein?

Ele saiu logo dali e nem pensou como faria para pagar o passador. Agora que tinha suas pedras ele não iria mais pensar por um bom tempo. Desde que se conhecia por gente queria fugir, sumir. Aquela escola particular cara em que estudava ele e seus colegas da alta burguesia a província o oprimia. Os modos finos de sua mãe – dama de sociedade – o oprimia. A opulência da mansão em que ele vivia o oprimia. O fato de seu pai ser cirurgião plástico faustuosamente remunerado e respeitado no Brasil e no exterior o oprimia. As aulas de natação o oprimiam. As baladas noturnas o oprimiam. O fato de nunca ter que se preocupar com o futuro o oprimiam. Ele precisava escapar fugir, viver. E encontrou no crack o que procurava. Fuga. Escape. Foi internado pela primeira vez depois de quase ter vendido todas suas roupas caras e grife e seus tênis importados. Os dezessete anos foi misturado com gente como ele de todas as idades. Não se achava viciado, portanto não deveria estar ali. E concluiu que seus pais não o amavam o suficiente por tê-lo colocado ali. Não participava das atividades, recusava-se a comer e não entrou em grupo de ajuda. Foi assim até fugir por um muro E assim foram seus outros cinco internamentos. Sempre estava fugindo. Da vida. Da responsabilidade. Das clínicas. De si mesmo. Aquilo lhe proporcionava alguns minutos ou segundos de fuga total para uma realidade paralela. E volta a realidade lhe era dolorosa. Nem sabia e nem se preocupava em descobrir o que lhe atormentava. Agora a cidade era sua e ele dormia onde seu corpo cansado e entorpecido pelas drogas e pela pinga barata conseguia cair. Entrou em uma casa abandonada e vez uso da primeira. Encontrou na saída um outro cara que tinha largado o colégio pelo mesmo motivo que ele e que se encontrava na mesma situação que ele. Fizeram uso de mais duas.

-Vamos levantar um dinheiro? Disse-lhe o amgo.

Ele concordou e o plano parecia simples.

Um português tinha uma banca de jornal na Praça Carlos Gomes. Era limpeza. O português não tinha arma. Tinham metido a boa fazia duas semanas e não tinha pegado nada. Quinhentas pratas na mão apenas para controlar o movimento dos “ratos”. E os “ratos” não tinha dado as caras. O português que corresse atrás do prejuízo.

Começaram a andar em direção ao tal estabelecimento decididos a montar no dinheiro. Ele pagaria o seu passador e ainda sobraria para mais algumas pedras. Poderia ficar alguns dias à deriva. Seus pais nunca se importaram com ele. Era o que ele pensava. Preferia viver na rua como um cão sarnento que receber ordens em casa. Quem precisa de roupas e cama quando se tem o que eu tenho, era sua lógica. Liberdade? Liberdade como? Mas não se admitia escravizado.

Já estava chegando. Ele antevia as notas de vinte, cinquenta e cem. Ele antevia gramas e gramas. Ele antevia uma curtição.

Entraram dando voz de assalto.

O Português fez um gesto de quem vai pegar algum embrulho debaixo do balcão e sacou um revolver calibre trinta e oito e deu o primeiro tiro.

Seu amigo correu em desarvorada carreira pela Marechal Deodoro. Coração acelerado. Mas nessas horas é cada um por si.

O projétil acertou-lhe no meio da testa , queimando seu cérebro e ele sentiu a pior dor que já tinha sentido em sua miseranda vida. Caiu de costas no chão. Um filete seu sangue quente saiu pelo ferimento. A Policia chegou vinte minutos depois.

Ele ainda estava com vida e foi encaminhado ao Hospital Municipal.

Os médicos ficaram estarrecidos que ele não tivesse morrido com aquele tiro.

Agora está lá numa enfermaria.

Se tiver sorte em alguns dias vai para debaixo da terra.

Se não terá de ser tutelado pelo Estado.

Curitiba, 07 de novembro de 2011, 26 graus celsius – Primavera.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 07/11/2011
Código do texto: T3322718
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