Bandeira estropiada
Para Maury Lacorte
DAGOBERTO MARTINS chegou à seção da Secretaria de Agricultura num de seus dias, disposto a se alegrar, a espantar todo e qualquer mau humor do ambiente, disposto mesmo a sair da rotina de papéis, formulários e carimbos... Mas fazer o quê? A vida é rotina... Além do mais, o país vivia uma ditadura militar e todo mundo desconfiava de todo mundo.
Mesmo assim, antes de iniciar os trabalhos, Dagoberto ainda contou aos companheiros a última da ditadura. Lá em São João del Rei o filho de um ricaço fora recolhido por atos subversivos. A família imediatamente constituiu advogado. O doutor foi até o quartel militar, onde fora recebido por um soldado, surpreendentemente solícito. O advogado se apresentou e explicou detalhadamente o que ocorrera. Seu cliente participara de uma passeata contra o regime e fora preso, e ele precisava entrar, para tratar da soltura. O soldado ouviu, ouviu e respondeu-lhe:
- Mas doutor, aqui nós não trabalhamos com advogado, não!
Caso contado, bom humor em dia, e lá se vão todos às suas enfadonhas tarefas. Rotina, rotina, rotina interminável, não fosse a visão que nosso Dagoberto teve de uma bandeira do Brasil, bem velhinha, desbotada, caindo aos pedaços, e o pavilhão estava hasteado na fachada de um banco público bem próximo. Aquilo era de mais! Chamou os companheiros.
- Gente, aquilo não pode ficar assim. Uma bandeira nacional naquele estado, em um banco oficial!
- E o que você tem com isso?
- Tem... que quero respeito com o pavilhão nacional, exijo respeito.
- Um escriturário? Vão lá eles se preocupar com tuas exigências.
- É o que veremos...
Dagoberto não titubeou. Catálogo... e mãos ao telefone... Do outro lado, alguém atende:
- Alô, Banco...
- Alô não, respeito. Aqui é o general Matias.
- Hã!!!
- Sim! General. Chama aí o mandão de vocês.
Bem rapidinho, o gerente já está ouvindo o general:
- Olha, acabo de passar aí em frente ao banco e fiquei escandalizado com o estado de nossa bandeira.
- Sim, general!
- Uma bandeira estropiada daquelas não pode representar a nossa Pátria. Tratem meio de substituir aquela por uma bandeira novinha em folha, ouviu?
- Sim, senhor.
- E tem mais... Quero isso bem depressa. Dou três horas pra resolverem isso ou tomo minhas providências. Estarei verificando, ouviu?
- Sim senhor, general!
E Dagaberto desligou sem nada mais dizer.
As horas que se seguiram foram de expectativa na repartição. Estaria o reinado da velha bandeira com seus minutos contados? Uma hora se passou, e nada. Lá estava ela, alta e pálida, firme nos seus propósitos. Volta e meia algum funcionário se deslocava em busca de novidades. Nada! Dagoberto não se preocupava. Imaginava que estavam se esmerando para cumprir as exigências do general.
Duas horas se passaram, um sol já forte fulminava o pavilhão envelhecido, e nenhum movimento se via. Dagoberto continuava confiante na sua ordem incisiva. Não se brinca com generais.
- Você acha que eles vão lá se preocupar com um certo general Matias?
- Não tem ideia de como se intimidam – respondeu Dagoberto, já um tanto preocupado com sua reputação de trotista.
O prazo dado estava prestes a findar. Na repartição, todos se sentiam cúmplices, e àquela altura a vitória do general era o triunfo de todos. Mas o pavilhão resistia... Quando já havia pouca esperança, alguém comunica uma movimentação.
Apoiada na marquise, uma escada conduzia o operário para o trabalho de troca, seguido por intrigados olhares de seus mandões nas janelas. Um pouquinho distante dali, do outro lado da rua, o general e seus comandados comemoravam a vitória. Estava salvo o trotista, mas o país continuava sob a bandeira dos generais.