AMIGOS DE JARDINEIRA



Vascolejando e vascolejando, de pé, acotovelávamos uns nos outros, dentro da jardineira lotada de passageiros. Muitos, amuados e como podíamos. Dedinho de prosa depois, ele já riu banguela e demonstrou gentileza:

— Manezinho Cabrito. Assim sou apelidado e conhecido por cá das Terras do Piau até o Porto Itamarati.

E estava às minhas ordens. Agradeci, mais achegado.

Sujeito de acanhamentos no começo, o novo amigo. Alma bondosa também. Proseava sem puxar, só no limite das minhas especulações. Entretanto, quando o fiscal de linha esbarrou pedindo as passagens para conferência, Manezinho Cabrito firmou-se no travessão de apoio, assim batendo o pêlo arrepiado:

— Aquele papelinho, seu cabra, amassei e larguei no mato. Estava pago.

Fiscal de linha insistiu. O passageiro, desta vez, rosnou por entre a podriqueira dos dentes sobrantes. Se quisesse o papelinho, pois revirasse a jardineira para trás e catasse a tranqueirinha na macega, agora a trinta quilômetros daqui, logo saindo do porto.

Vi a faca cabo-de-osso na cintura; nem escondia, nem exibia. Puro cabra macho. Atalhei os nervosismos, perguntando se faria baldeação para a Comarca.

— Faço não, seu. Apeio em Terras do Piau.

Tinha ali mulher e pouca família. Regressava amolado do Nordeste, com saudades tristes na cara. Há mais de mês em Nova Casa Nova, na Bahia, cuidando de enterrar a mãe, morrida de velhice mesmo. Ainda ajeitara acomodações para o padrasto espichar os cambitos em logo.

Na subida da serra, virada do caminho, ônibus parou. Zunzunzum dos passageiros: não cabia ninguém; não era possível entrar o montinho de pessoas. O motorista pedia compreensão, por não poder largar na estrada nenhum passageiro. Os daqui de dentro se amotinavam. Entrementes, um branquelo pôs a cara, forçando a entrada bloqueada. No que o baiano acudiu:

— Oxente, qual diabo é? — espichando o pescoço por sobre os demais. — Qual diabo evem empurrando aí os que não querem deixar passar?

— Toque logo essa jabiraca, motorista. Não tem lugar para um pé — berrou a gordanchuda prancheada na poltrona bem abaixo de nós. — Ora, já não me basta o atraso deste horário, agora querem acumular um sobre o outro aqui dentro?

O marido dela (achamos que fosse), esse se encostou de-banda, fingindo cochilar ante o destampatório. O fiscal de linha ordenou: os de pé, fizessem o favor de dar um passinho para trás. Assim, o branquelo prosseguiu espremendo um e outro, acomodou-se entre nós. Manezinho Cabrito havia autorizado. Esse um era de ir, porque descia em Terras do Piau, casa do baiano, onde namorava a Corina, uma das filhas.

Desinteressei-me. Assuntos íntimos da família. Mas o pretenso sogro gabava-se derretendo:

— Sou um cabra danado lá da Bahia, seu..., seu...

Estalava os dedos, solicitando o meu nome, agora entusiasmado.

— Pois sou da Bahia, seu José. Um conhecedor. Farejo a praga de veia quando um me põe o focinho perto. Então eu digo deste aqui, meu quase genro. O Amorim. Não conheço gente que seja dele, mas até a alma é pura de branca. Mais bondoso, ninguém viu. Zelador dos terreiros do doutor Terezo. A ele dei minha Corina. Em casa, este um entra e sai como o dono. O negócio é firme. Vão passar a papelada na safra, seu José.

Vascolejando e vascolejando, a jardineira rompia tediosa ao meio da viagem, com as lonjuras para as duas bandas, tanto para chegar, quanto para voltar. Fiscal de linha, arredando os passageiros do corredor, aproximou-se para destacar o papelinho ao Amorim. Manezinho Cabrito fez questão e quitou o bilhete. Por mais adiante, compondo tristura na prosa, vindo rodear o genro:

— Lá em casa, seu Amorim, como vão minha gente e minhas famílias?

Amorim, corado e importante, brilhou nos olhos e deu notícias de boas falas.

— Ei, minha Corina...

O pai suspirando lembranças da filha; breve largaria a casa, casada com o Amorim.

— E então a minha Corina, seu branquelinho? Aquela anda mesmo firme nos conformes do casório, seu branquelinho?

Amorim balançou a cabeça, afirmativamente. Os olhos faiscaram. O baiano também balançava a cabeça, em conformidade:

— Minha Corina, sim, senhor. E suspirou: — Aquela Corina, família mais velha, ah! seu. Aquilo é moça certa, amuadinha, abalizada... Oxente, esse Amorim sabe — agora me incluindo de volta à conversa —, esse Amorim, seu José, que deu o passo direito na vida: a Corina lá é família pronta, prestimosa na casa e nos gostos.

A jardineira rompia atarracada, manhosa pelo aclive da outra serra. Um passageiro observou, tão lerda, podia-se apanhar coquinho no mato e retomar a mesma condução adiante. A gordanchuda era desalento e muxoxos, grudada no mostrador do reloginho de pulso, perdida com tamanho atraso.

— Faço gosto eu também, seu José — alarmou o baiano, recuperando o assunto do casamento da filha. — Esse casório vem em riba da hora. A bichinha da Corina já passava dos tempos, quando me aparece esse Amorim. Uma bênção, o cabra certo. Bem certo.

De tal jeito.

E o branquelinho, em linho amarelo, chapéu combinando, ria com o dentinho de ouro na presa de cima.

Terras do Piau, fizemos baldeação. Os dois ficaram. À despedida, o baiano:

— Seu José já tem em Piau a casa de amigo pobre, para lavar os pés e dormir uma noite.

Enfim, poltrona desocupada. Pude sentar-me, e espichei as pernas que ferviam. Pus a cabeça pela janela, vi o Amorim carregando as malas do sogro. Manezinho Cabrito, tirando o chapéu-de-couro em reverências, gritou nas conchas das mãos:

— Voltando da Comarca...! gesticulou, indicando por ali descendo a ruazinha onde morava.

Voltando da Comarca, desci a ruazinha direto até o portão onde tinha pinguela para atravessar. Perguntei pelo baiano. Morava logo na paineirona, a casa com o banco de tábuas aparadas na frente, coberto de florzinhas caídas. Mulher de remendos e uma moça catavam arroz na peneira de taboca. A moça lamentava-se:

— Sabemo’ dele não, sinhô. O pai anda brabo pelos cafundós, de peixeira e carabina.

Manezinho Cabrito era cabra brioso. Avexado e puro macho, caçava o Amorim pelas quiçaças de baixo e de riba, porque tinha renegado a Corina e fugido com a mais nova, a Nair.

Lavei os pés e pernoitei. Manhã cedinho, bem descansado, prossegui viagem na jardineira, de volta para o Lugarejo.



Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 03/11/2011
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