FAZENDA AROEIRINHA
Crioula é quem zela do Coronel, agora nos fins dessa situação. Homem sestroso e de venetas em idade boa, contudo, hoje mora incapaz de cuidar das necessidades dele.
Mas, tudo quanto fora ruindade cometida na Aroeirinha, Crioula releva. Não perdoa, nem nunca pode perdoar, quando Marianita, a filha única da fazenda, começou perdendo os sentidos de tanta febre e não resistiu até de-madrugada. Não faltou pesar dos moradores, vindo até dos mais longe. Dona Renita, a mãe, coitadinha, enfraqueceu os equilíbrios das idéias naquela vez. Clamava em desespero nos braços da Crioula, porque um anjinho de cinco anos não podia acabar assim sem mais nem menos, parecendo castigo sem jeito de se conformar.
O patrão, não. Ele fez sentimentos na hora. Depois do enterro, de-tarde, varou a noite num jogo de truco em cima da mesa, em cuja velaram o caixãozinho da Marianita. E nunca mais permitiu relembrar o assunto da filha morta.
Isso, Crioula não perdoava. Só isso.
Nem guardava mágoas de quando, tendo vindo ao Lugarejo, voltou para casa com a história de ter visto o Marruco Fumaça, ela e o Menino juntos. Foi nesse mal-fadado dia que o Patrão fez uma cara de duvidar, azeda, e ainda jogou eles fora da fazenda.
Sol alumiando o dia, pois ela e o Menino viram, sim, o Marruco Fumaça. Em carne e osso, bem debaixo do açoita-cavalos, na sombra fresca dos galhos. Primeiro, quem tretou com cismas foi a mula de sela. Empacava. Refugava. Corcoveava. Parecendo mesmo vendo assombração. Daí, mais para perto do açoita-cavalos, a coisa mal arrumada no destino dela e do Menino. Podia ser um boi parecido, mas muito igual ao Marruco Fumaça. O Menino foi logo gritando:
“— Viche, mãe. É o Fumaça do padrinho.”
Um tal boi degolado a mando do Coronel.
Ali, Crioula sentiu um gelo escorrendo na espinha. Fumaça morto em dia de vingança, na frente de todo povaréu, por ordem do patrão já fazendo muito tempo. Esforçou para acreditar noutra coisa e convencer o Menino daquilo. A mula não se iludia no caso, cada vez mais refuguenta, quase derrubando a montaria.
O Menino então gritou, chamando o boi. E, ali no limpeiro do pasto, açoita-cavalos com sombra larga, Marruco Fumaça estava assombrando e sumiu sem largar as marcas dos cascos.
A mula disparou nos pés, parando só às portas de casa. Os moradores também desconfiaram, porque o boi era assassino do Encarregado. Pior foi o patrão não acreditar e ainda danar com ela, devido os rebuliços causados na Aroeirinha.
O menino andou perrengue, estatelado, medo encalacrado de ir ao pasto até para buscar vaca de curral, arruinando mais e mais. Juntando isso com o zunzunzum na fazenda, medo até de rir de-noite, foi então que o patrão mandou o capataz providenciar a carroça e despejar Crioula com trapos e cacos fora das terras.
Deserdada e sem consideração, Crioula andou longe, custando arranchar num canto, casinha só dela.
O Menino virou homem.
Nunca mais soube notícias da Aroeirinha.
Daí, veio o Capataz buscando para zelar do Coronel. Contou a ela o caso mais esquisito da vida de todo mundo. Dis’que, da mesma maneira daquela vez, no sol quente do dia e ali na sombra boa do açoita-cavalos, patrão topou com o Fumaça. Mas muito pior, porque, além do boi assassino, viu ainda o Encarregado morto na chifrada, os dois juntos e acertados, ninguém de encrenca um com o outro.
Coronel enfiou-se em casa, gaguejando um assunto a mesma coisa, de-dia e de-noite. Logo já se desfez das terras para se amoitar no Lugarejo, onde seguiu perdendo o tino e a fala.
Tornou-se daquele jeito, sem poder cuidar nem das necessidades dele próprio, entrevado na cadeira-de-rodas. Para sempre.
Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.
Crioula é quem zela do Coronel, agora nos fins dessa situação. Homem sestroso e de venetas em idade boa, contudo, hoje mora incapaz de cuidar das necessidades dele.
Mas, tudo quanto fora ruindade cometida na Aroeirinha, Crioula releva. Não perdoa, nem nunca pode perdoar, quando Marianita, a filha única da fazenda, começou perdendo os sentidos de tanta febre e não resistiu até de-madrugada. Não faltou pesar dos moradores, vindo até dos mais longe. Dona Renita, a mãe, coitadinha, enfraqueceu os equilíbrios das idéias naquela vez. Clamava em desespero nos braços da Crioula, porque um anjinho de cinco anos não podia acabar assim sem mais nem menos, parecendo castigo sem jeito de se conformar.
O patrão, não. Ele fez sentimentos na hora. Depois do enterro, de-tarde, varou a noite num jogo de truco em cima da mesa, em cuja velaram o caixãozinho da Marianita. E nunca mais permitiu relembrar o assunto da filha morta.
Isso, Crioula não perdoava. Só isso.
Nem guardava mágoas de quando, tendo vindo ao Lugarejo, voltou para casa com a história de ter visto o Marruco Fumaça, ela e o Menino juntos. Foi nesse mal-fadado dia que o Patrão fez uma cara de duvidar, azeda, e ainda jogou eles fora da fazenda.
Sol alumiando o dia, pois ela e o Menino viram, sim, o Marruco Fumaça. Em carne e osso, bem debaixo do açoita-cavalos, na sombra fresca dos galhos. Primeiro, quem tretou com cismas foi a mula de sela. Empacava. Refugava. Corcoveava. Parecendo mesmo vendo assombração. Daí, mais para perto do açoita-cavalos, a coisa mal arrumada no destino dela e do Menino. Podia ser um boi parecido, mas muito igual ao Marruco Fumaça. O Menino foi logo gritando:
“— Viche, mãe. É o Fumaça do padrinho.”
Um tal boi degolado a mando do Coronel.
Ali, Crioula sentiu um gelo escorrendo na espinha. Fumaça morto em dia de vingança, na frente de todo povaréu, por ordem do patrão já fazendo muito tempo. Esforçou para acreditar noutra coisa e convencer o Menino daquilo. A mula não se iludia no caso, cada vez mais refuguenta, quase derrubando a montaria.
O Menino então gritou, chamando o boi. E, ali no limpeiro do pasto, açoita-cavalos com sombra larga, Marruco Fumaça estava assombrando e sumiu sem largar as marcas dos cascos.
A mula disparou nos pés, parando só às portas de casa. Os moradores também desconfiaram, porque o boi era assassino do Encarregado. Pior foi o patrão não acreditar e ainda danar com ela, devido os rebuliços causados na Aroeirinha.
O menino andou perrengue, estatelado, medo encalacrado de ir ao pasto até para buscar vaca de curral, arruinando mais e mais. Juntando isso com o zunzunzum na fazenda, medo até de rir de-noite, foi então que o patrão mandou o capataz providenciar a carroça e despejar Crioula com trapos e cacos fora das terras.
Deserdada e sem consideração, Crioula andou longe, custando arranchar num canto, casinha só dela.
O Menino virou homem.
Nunca mais soube notícias da Aroeirinha.
Daí, veio o Capataz buscando para zelar do Coronel. Contou a ela o caso mais esquisito da vida de todo mundo. Dis’que, da mesma maneira daquela vez, no sol quente do dia e ali na sombra boa do açoita-cavalos, patrão topou com o Fumaça. Mas muito pior, porque, além do boi assassino, viu ainda o Encarregado morto na chifrada, os dois juntos e acertados, ninguém de encrenca um com o outro.
Coronel enfiou-se em casa, gaguejando um assunto a mesma coisa, de-dia e de-noite. Logo já se desfez das terras para se amoitar no Lugarejo, onde seguiu perdendo o tino e a fala.
Tornou-se daquele jeito, sem poder cuidar nem das necessidades dele próprio, entrevado na cadeira-de-rodas. Para sempre.
Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.