CHIFRES
A ocupação na fazenda do Lazico ia bem. Vaqueiro.
Prosperava na lida, e ali tinha arranjado mulher. Com o tempo de reparar, o filho do casal não vinha. Disfarçava: cedo para pôr boca nova no mundo; tempo envolvido em melhorar de situação.
Demorando e demorando no cargo certo, patrão dava confiança. Camarada jeitoso. Assíduo. Prestativo.
Entrementes, um dia logo cedo o sujeito arriba da cama com veia alterada. No curral, cisma uma vaca parida de novo; saracoteia, pula na peia e cai estrebuchando em riba do bezerrinho verde, sem tempo de salvar. Zé recorre à vara de jacarandá e açoita com a maior força na cabeça da treteira. O chifre arranca e vem espatifar-se na cerca. Esterco do curral logo vira sangueira misturada, com o esgotamento até da última gota.
Seu Lazico soube do prejuízo e desconsiderou tudo quanto o peão tivera feito de bonito na fazenda. Na balança, um caso não justifica o outro, e uma rês não morre assim matada por ter eliminado a cria. Zé ganhou o trecho e não teve direito na fazenda.
Nas redondezas, o fato repercutiu. Zé bateu fazendas daqui para ali e de lá para cá, mas a vaca morta dava o assunto andando na frente. Do contra: chegava e punha o peão desempregado, porque era o “tal que arrancou o chifre da vaca do Lazico”. Nesse viés, quem podia impedir o resultado? O troço veio dar ao vaqueiro o decorrente apelido: “Zé do Chifre”.
Chifre no nome do Zé nada mais era além do bem entendido fato ocorrido com a vaca do Lazico. Mas, embandeirando boatos, o diz-que-diz entortava o rumo do caso mais para as beiras do quintal do vaqueiro. Mulher certa e o orgulho do Zé nos rompantes, a favor de quem se punha a mão no fogo a favor, agora principiava cair em suspeitas, sugerindo o apelido. Tanto e tanto, ele antecipou as providências. Negociou uma espingarda e foi espiar.
Topou com o indevido.
Diante do constatado, Zé do Chifre recolheu seus badulaques e a espingarda, largou o Lugarejo e veio formar terras no Bico-do-Papagaio, coladinho no Pará.
Pisou e sentiu o chão, bombachas e barba comprida, lá lhe concedeu o nome de Zé Guaiaca. Ia bem de novo. Região bruta, povoada de matuto, quem mata depressa e cai de repente. Mas o Zé tinha marcado nos sentidos passar por cima dos perigos. Na disputa de grileiros, Zé Guaiaca metia a barba ruiva e arrotava grosso, pondo dinheiro vivo na cara do confrontante, exibindo o trinta e oito por fora da camisa. Cada dia cedo, arredava a cerca de divisa mais para lá, assim latifundiário de gado.
Aumentando a peonada de labuta, quem apareceu nas terras foi o Carrasco, e era um italianinho miúdo, vermelho e descascado, calçando botas e usando um chapéu panamá branco. Grande, só no curral: Carrasco segurava chifres a unha e derrubava marrucos na poeira, para ferrar com fogo a marca na paleta do gado: JG, José Guaiaca.
Podia ser bagatela, mas Zé atinou de revidar o passado. Aproveitando a destreza do italianinho, achou Carrasco apelido curto, e espichou: Carrasco do Chifre. Alcunha boa, atarracou-lhe tal carrapatinho-da-seca em boi de quiçaça.
Carrasco do Chifre, sim, não foi lerdo em perceber os rumos do apelido, que era num crescente cada vez mais em conta, muito indicativo. Enfezado, cercou o patrão na porteira da fazenda e rasgou os trapos, enfileirando razões para estar preocupado. Queixou-se com detalhes e mandou aviso de atirar no primeiro engraçadinho. Sem estrago no couro, ia acertar na mira certa, dentro do olho de quem continuasse com gracinhas para cima da Felícia.
Dali por diante, Zé Guaiaca não deu na cara mas vestiu a carapuça e perdeu a graça. E Carrasco ia e vinha azoado, desconfiando de mascates, ambulantes e todos quantos se abeiravam de seu terreiro. Peão braço direito na lida, agora capaz de loucuras, em vias de sujar as mãos com os extremos. Zé Guaiaca reconhecia: o diabo era a mulher do peão, jeitosa demais.
Caiu na insônia. A prosa na porteira zunzunava nos sentidos. Zé Guaiaca teve raiva do amor. Cauteloso, não vinha considerando assumir um segundo casamento, e aquele rela-rela bem segredado, é certo, resolvia as necessidades. Mas, agora o risco anda maior. Perturbado com a Felícia, mulher do Carrasco, achava injusto morrer matado por causa dela. Hora combinada, no lugar escondido, foi reto no assunto com ela. Em princípio, a Felícia pasmou. O marido, valente e correto, merecia terminar de outro modo. Numa queda de cavalo. De doença da malária. Furado por um boi aspudo. Tantos modos, nunca pelos feitos dela.
Mas, de fato, ela meditou melhor: Carrasco tem sido estranho, consertando as tramelas das portas e dormindo muito tarde. É certo: desconfia. Mais cedo, mais tarde...
- Mais cedo, mais tarde - emendou o patrão, bem enfático -, mais cedo, mais tarde, ele, patrão, Zé Guaiaca, cochila no canto e só acorda com o estampido do tiro.
Tiro decerto dentro do olho, como o Carrasco mencionara, a fim de não se estragar o couro.
Credo! Não e não! A mulher, logo se viu para o lado de quem pendeu. E acatou.
Carrasco regressava de quinze dias. Tocando um gado negociado de longe, entrou pelo arraial da fazenda e remoía uma desconfiança da freguesia. Apeou e veio para a mulher. Sério, compenetrado. Ela lhe fez o gracejo das saudades.
A xícara de café, Carrasco nem suspeitou. Entornou na goela, logo um gosto adstringente sufocou. Tentou ver os arredores, as vistas eram turvas.
Dali para logo, o bucho encolheu, apertou. O tempo de vida, só de gemer um pedido derradeiro. Para o Zé Guaiaca, bom patrão e homem sério, acatar a Felícia e não deixar os outros piorarem a vida dela.
Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.
A ocupação na fazenda do Lazico ia bem. Vaqueiro.
Prosperava na lida, e ali tinha arranjado mulher. Com o tempo de reparar, o filho do casal não vinha. Disfarçava: cedo para pôr boca nova no mundo; tempo envolvido em melhorar de situação.
Demorando e demorando no cargo certo, patrão dava confiança. Camarada jeitoso. Assíduo. Prestativo.
Entrementes, um dia logo cedo o sujeito arriba da cama com veia alterada. No curral, cisma uma vaca parida de novo; saracoteia, pula na peia e cai estrebuchando em riba do bezerrinho verde, sem tempo de salvar. Zé recorre à vara de jacarandá e açoita com a maior força na cabeça da treteira. O chifre arranca e vem espatifar-se na cerca. Esterco do curral logo vira sangueira misturada, com o esgotamento até da última gota.
Seu Lazico soube do prejuízo e desconsiderou tudo quanto o peão tivera feito de bonito na fazenda. Na balança, um caso não justifica o outro, e uma rês não morre assim matada por ter eliminado a cria. Zé ganhou o trecho e não teve direito na fazenda.
Nas redondezas, o fato repercutiu. Zé bateu fazendas daqui para ali e de lá para cá, mas a vaca morta dava o assunto andando na frente. Do contra: chegava e punha o peão desempregado, porque era o “tal que arrancou o chifre da vaca do Lazico”. Nesse viés, quem podia impedir o resultado? O troço veio dar ao vaqueiro o decorrente apelido: “Zé do Chifre”.
Chifre no nome do Zé nada mais era além do bem entendido fato ocorrido com a vaca do Lazico. Mas, embandeirando boatos, o diz-que-diz entortava o rumo do caso mais para as beiras do quintal do vaqueiro. Mulher certa e o orgulho do Zé nos rompantes, a favor de quem se punha a mão no fogo a favor, agora principiava cair em suspeitas, sugerindo o apelido. Tanto e tanto, ele antecipou as providências. Negociou uma espingarda e foi espiar.
Topou com o indevido.
Diante do constatado, Zé do Chifre recolheu seus badulaques e a espingarda, largou o Lugarejo e veio formar terras no Bico-do-Papagaio, coladinho no Pará.
Pisou e sentiu o chão, bombachas e barba comprida, lá lhe concedeu o nome de Zé Guaiaca. Ia bem de novo. Região bruta, povoada de matuto, quem mata depressa e cai de repente. Mas o Zé tinha marcado nos sentidos passar por cima dos perigos. Na disputa de grileiros, Zé Guaiaca metia a barba ruiva e arrotava grosso, pondo dinheiro vivo na cara do confrontante, exibindo o trinta e oito por fora da camisa. Cada dia cedo, arredava a cerca de divisa mais para lá, assim latifundiário de gado.
Aumentando a peonada de labuta, quem apareceu nas terras foi o Carrasco, e era um italianinho miúdo, vermelho e descascado, calçando botas e usando um chapéu panamá branco. Grande, só no curral: Carrasco segurava chifres a unha e derrubava marrucos na poeira, para ferrar com fogo a marca na paleta do gado: JG, José Guaiaca.
Podia ser bagatela, mas Zé atinou de revidar o passado. Aproveitando a destreza do italianinho, achou Carrasco apelido curto, e espichou: Carrasco do Chifre. Alcunha boa, atarracou-lhe tal carrapatinho-da-seca em boi de quiçaça.
Carrasco do Chifre, sim, não foi lerdo em perceber os rumos do apelido, que era num crescente cada vez mais em conta, muito indicativo. Enfezado, cercou o patrão na porteira da fazenda e rasgou os trapos, enfileirando razões para estar preocupado. Queixou-se com detalhes e mandou aviso de atirar no primeiro engraçadinho. Sem estrago no couro, ia acertar na mira certa, dentro do olho de quem continuasse com gracinhas para cima da Felícia.
Dali por diante, Zé Guaiaca não deu na cara mas vestiu a carapuça e perdeu a graça. E Carrasco ia e vinha azoado, desconfiando de mascates, ambulantes e todos quantos se abeiravam de seu terreiro. Peão braço direito na lida, agora capaz de loucuras, em vias de sujar as mãos com os extremos. Zé Guaiaca reconhecia: o diabo era a mulher do peão, jeitosa demais.
Caiu na insônia. A prosa na porteira zunzunava nos sentidos. Zé Guaiaca teve raiva do amor. Cauteloso, não vinha considerando assumir um segundo casamento, e aquele rela-rela bem segredado, é certo, resolvia as necessidades. Mas, agora o risco anda maior. Perturbado com a Felícia, mulher do Carrasco, achava injusto morrer matado por causa dela. Hora combinada, no lugar escondido, foi reto no assunto com ela. Em princípio, a Felícia pasmou. O marido, valente e correto, merecia terminar de outro modo. Numa queda de cavalo. De doença da malária. Furado por um boi aspudo. Tantos modos, nunca pelos feitos dela.
Mas, de fato, ela meditou melhor: Carrasco tem sido estranho, consertando as tramelas das portas e dormindo muito tarde. É certo: desconfia. Mais cedo, mais tarde...
- Mais cedo, mais tarde - emendou o patrão, bem enfático -, mais cedo, mais tarde, ele, patrão, Zé Guaiaca, cochila no canto e só acorda com o estampido do tiro.
Tiro decerto dentro do olho, como o Carrasco mencionara, a fim de não se estragar o couro.
Credo! Não e não! A mulher, logo se viu para o lado de quem pendeu. E acatou.
Carrasco regressava de quinze dias. Tocando um gado negociado de longe, entrou pelo arraial da fazenda e remoía uma desconfiança da freguesia. Apeou e veio para a mulher. Sério, compenetrado. Ela lhe fez o gracejo das saudades.
A xícara de café, Carrasco nem suspeitou. Entornou na goela, logo um gosto adstringente sufocou. Tentou ver os arredores, as vistas eram turvas.
Dali para logo, o bucho encolheu, apertou. O tempo de vida, só de gemer um pedido derradeiro. Para o Zé Guaiaca, bom patrão e homem sério, acatar a Felícia e não deixar os outros piorarem a vida dela.
Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.