Lavador de Defuntos

(*)

Um

Se não notasse direito o gemido fraco, qualquer um escapava de ver o moribundo enfim espichando os cambitos. Suspiro de alívio: infortúnio de doença braba, desenganado de cura. Por isso, Alcidão, quem hoje na piora do caso não arredara o pé da cabeceira do pai, acena um sinal para o outro, do outro lado, nos pés da cama, o Zezito, sair com ele lá fora, para uma conversa reservada:

- Precisa ser conformado – consolou, dando o entender de aviso de morte.

- Será que o pai desta vez descansou?

O irmão amolecia por ser mais novo, ingênuo. Mas o Alcidão encarou com reprimenda, de um modo suficiente para o Zezito sentir o terreno, do jeito que é o sistema. Agora, nessa posição, o Alcidão mais parecia com os costumes do pai, atrevido nas ocasiões infaustas e periclitantes.

Tem hora, desconfiava ele num pensamento particular, a morte termina vindo e resolve os problemas.

Por ali, no terreiro, as galinhas ainda atrasadas dos poleiros ciscavam com pescoços compridos e adivinhando a morte do dono; principiava um escurecer de sol posto atrás dum barrado que se levantava no vermelho do céu, lá para as bandas das cabeceiras do sítio.

- Logo é noite cerrada – avisou o Alcidão, passando a ordem inconteste. – Pegue os cavalos e o Caetaninho, vão buscar o seu Nino.

Saíram os dois galopando cada qual um cavalo de arreio, porque, no caminho de volta era de vir o lavador de defuntos, montado e no mais breve possível.

Légua e meia, seu Nino dava conta da notícia. Entrou para o quartinho, recomendou afazeres lá com os seus, saiu com os petrechos na mão e veio fechando a camisa de mangas compridas, limpa de guarda-roupa, com o fim de se resguardar do sereno. Ajeitou o chapéu, subiu no estribo:

- Sendo as horas, meus filhos, vamos ver o finado pai de vocês.

Caminharam um pouco de caminho e a viagem rompia na calada, tudo como determina a ocasião contrita, quando a presença da morte segue junto e sujeita a idéia muito plena de reverências.

O trote dos cavalos, ora na areia fofa, ora no cascalho solto, tudo era o eco dos cascos, que representava vir dali da beira-mato outra tropa de outros cavaleiros, onde a estrada se estendia quase encostada.

A lua era limpa, subindo no alto do céu, imponente e misteriosa.

O menino mais novo, o Caetaninho, vinha atarracado na cintura do lavador, como medroso de cair, como medroso de se perder no caminho, mas medroso mesmo de imaginar morto o pai e as almas assombradas rondando por ali, nos lugares dos matos e dos pastos, que eram as bandas preferidas de quando o pai era vivo.

Dos três filhos do falecido, esse outro menino, o do meio, o Zezito, ele cutucava a barriga do seu cavalo, fustigando o animal numa afoiteza de querer pressa na hora de chegar, preocupado com as ordens do Alcidão, o irmão mais velho e agora assumindo as responsabilidades e as brabezas que antes eram do pai.

- Eia, menino. Eu vou no trote, na toada mansa, sem afobação.

- Puxo na frente, mais depressa, para o senhor chegar no mais breve – justifica-se o menino que cutucava o cavalo. – Bom... Foi o Alcidão que me falou: senão o pai complica a labuta de lavar, com o corpo frio e endurecido.

- Qual! Morreu, morreu – recriminou o lavador. – Frio, o pai de vocês já é, o que sacrifica o banho, e correr agora é besteira de querer ver um cavalo desse tropicar e rolar no chão.

A lua clareava bem. A cavalgada era vista de uma para a outra, agora mansa e emparelhada, com os animais se tocando e os estribos tinindo nos resvalos. Iam andar até a madrugada.

- Essa desculpa de sacrificar o banho num defunto – explicou o lavador, necessitado de dar esclarecimentos de valor à lida -, uma coisa que conta no corpo frio e duro, de já muito morto, é a dificuldade de arrancar as roupas. Tem hora, a tesoura funciona e põe perdida uma calça ou uma camisa. Nesse caso do pai de vocês, o negócio certo é o Alcidão matinar o correto, já conhecendo a demora do banho, então pegar e deixar o corpo sem as roupas muito antes do endurecimento...

Carregado de estrelas maiores e menores, cintilantes, o céu piscava de pontinhos amarelos, quando riscou daqui para ali uma estrela, correndo atravessada num risco, sumindo longe. Todo mundo viu; calou-se com atenção para ouvir o estrondo de coisa grande espatifando-se no chão. Mas, que bobeira! Estrela cadente não cai com o efeito de estrondar-se no chão.

- Viram aquela cadente? – perguntou seu Nino, interrompendo outro pensamento, que era desagradável.

Tinham visto, sim, os dois meninos juntos, o espetáculo do céu, hoje com as induções do fato mais agourento, quando, antes, tinham lhes ensinado que aquilo era esperança de coisa boa.

- Na idade de vocês, eu pouca coisa mais novo pegava e saía de noite e descia para a estradinha de areia morna, ali me deitava espiando para o alto, assuntando a hora das cadentes. Mandava três pedidos bons, que era minha madrasta quem contava, e ela só acatava os meninos pedirem a saúde, a caridade dos necessitados e a fé em Deus.

Zezito tossiu no cavalo que trotava sozinho, parecendo só querer consentir as vantagens do lavador assim conversando no andamento da viagem. Vinha descobrindo que, muito tempo calado, a noite atrai e provoca assombros para quem segue entrando no percurso dela.

- Cuide dessa tosse, meu filho. É a friagem do sereno. Chegando no pai de vocês, mando preparar um chá com mel, o incômodo cessa.

Zezito tossiu mais sadio, porque não era tosse de se aborrecer. Seu Nino andava o tempo de apanhar o assunto.

Mas, no exato momento, no matinho ficando ali de-banda, deu-se um grito no meio. O menino da garupa grudou na cintura do lavador, os bracinhos enérgicos, quentes.

- Sossegue, filho – disse seu Nino, também tentando segurar o cavalo espantado. – Sossegue, o bicho-papão é nada mais que um urutau cantando pra lua.

Zezito, satisfeito com a lembrança dessas aves da noite, acalmou-se que não era aparição nem nada duvidoso. Tossiu só para disfarçar-se alegre, apaziguado.

Depois de controlar o caso, seu Nino perseguiu o céu e caçou uma distração:

- Ó! Outra cadente caindo lá, vejam. Assuntem, parece que vai estrondar na terra. Cai no mar, no meio das ondas. Todo menino tem um dia de conhecer o mar como é só um mundaréu de água, cheio de ondas brabas, indo lá no fim, quando as nuvens vão beber a chuva. Quem viu o mar sabe porque a cadente não estronda quando cai. Umas erram o destino do mar, acertam o chão e ali afundam uma caverna. Nesse lugar, quem descobrir, é pegar a cavar, dá num pote de ouro que não cabe numa casa. Mas, nessas bandas de cá, nos nossos lados, ninguém dá notícia de quem achasse a caverna de uma cadente...

O lavador encurtou as rédeas, retomando os cuidados com a viagem, porque o assunto erguia para o ponto mais altivo, e, como são menores os meninos, agora talvez assuntem a prosa com as cautelas mais interessantes.

- Com o pai de vocês já finado, precisam dar importância nos conselhos dos outros, escutar quem é o mais velho, agir pelo certo.

Zezito tossiu, porque nesse tema o irmãozinho caçula ficava muito triste, percebendo nele os suspiros da solidão.

Seu Nino, sempre chamando as rédeas do cavalo trôpego de sono, em cada vez o irmãozinho da garupa achegava-se mais perto dele, abraçando-o pela cintura e melhorando os consolos. Transcorrido pouco de caminho calado, o lavador incumbiu-se de resgatar a prosa que, cheia dos benefícios, tinha mesmo era a desculpa de ocupar a noite:

- Tem um ensinamento de quando o defunto, soltando o derradeiro suspiro, dali do corpo já se desgruda a alma desse cristão e sobe para as nuvens. De noite, vira uma estrela carregada de luz. O pai de vocês, nessas alturas, virou uma estrela no meio desse monte. Ninguém no mundo com a sabedoria de decifrar quem é, mas eu garanto: uma é ele, a outra é outro defunto, e por aí qualquer estrela é uma alma defunta...

- !

Zezito, então preocupado com o irmãozinho caçula, tossiu só para o lavador amainar a prosa de defunto, do pai e dos outros morridos, todo esse povo do desconhecido e do espantoso.

- ...Minha madrasta, era o costume dela sair no terreiro e se pegar numa cantoria com a gente, mostrando para o alto que uma daquelas estrelinhas era nossa mãe grudada no céu. Nas noites de pouca estrela, quase dava para descobrir quem era a mãe, mas a madrasta teimava e dizia que nunca ninguém descobria o certo.

- ...Ela, um dia de noite, eu deixei uma encabulação nela, quando mostrei a desconfiança da estrela cadente ser logo a minha mãe se desgrudando do céu.

- !

- ?!

Atravessaram um Corguinho com muito sapo em pantomina espalhados pelas beiras. A tropa entrou na água e seguiu bebendo afoita, mascando o bridão do freio, enchendo a pança. Adiante, areão fofo, a toada macia, eles já entraram pelas sombras dos monjoleiros muito cheirosos com a umidade dos serenos. O coraçãozinho do Zezito batia desacertado, quando o aroma da noite mandava nos sentidos e suspeitava um perfume de velório, como nunca esquecido na morte da avó Júlia. Lembrou das meninas, as primas dele, que foram buscar os tipos das flores brancas e cobriram o corpo no caixão, pondo à mostra só a carinha azul e enrugada, bem idosa. Um cheiro muito igual ia ser, decerto, o velório do pai. Correu os olhos pelo céu, o pisca-pisca das estrelas, agora mais difícil de desembaralhar sob a sombra das árvores, mas as luzinhas só pareciam andar com eles, as de longe, sempre longe, e as de perto, não tão perto.

Havia à frente uma porteira robusta e afamada, de mourões exagerados, que dava caminho e fazia uma encruzilhada nas estradas. Para o Zezito, o que lhe ocorria na visão dessa madrugada era a porteira de um lugar de paragens dos cavaleiros, dos andantes, num ponto onde se ajustavam os encontros, as esperas, quando os assuntos eram de negócios, de acertos, ou se não tão importantes, eram pelo menos as desculpas de combinado com as amizades ou até de um princípio de namoro entre os moços com as moças.

Zezito, tossindo uma lembrança do pai que a porteira decerto vai lembrar pelos anos a dentro, adiantou-se abrir a passagem e esperou primeiro o seu Nino atravessar. A porteira bateu e a batida escandalosa, seca, cheia de eco na invasão da noite – quase madrugada mesmo - foi dando a suspeita de uma fila de porteiras por ali, mas onde as pessoas se despedem, quando os assuntos de dividem cada qual com o seu, e um segue numa estrada, que o outro vai pela outra, quando a esperança pode ir junto de se reencontrar um dia, ou então não poder nunca mais.

O lavador cutucou as esporas nos sovacos do cavalo, desconfiado que o animal distraía com a montaria, assumindo um troteado fora de compasso e pretenso de tomar na encruzilhada a direção contrária dos rumos. Normalizando a toada, tendo agora embicado no caminho que segue no velório, seu Nino escarafunchou lá de trás o assunto das estrelas:

- O que eu acredito hoje, quando a madrasta contava, alterou a minha crença. Mas do pai de vocês, nessa idade de menino, basta confiar que o defunto lavado e velado, amanhã é terra em cima, caso passado. A notícia que corre é a notícia que some, como o rastro na chuva. Os meninos menores demoram mais para esquecer. Então, depois podem mirar no céu e constatar uma estrela, qualquer uma: é lá o pai de vocês. É uma estrela que nunca apaga, não vira uma cadente, porque ninguém confirma quem ela é no meio das tantas.

A lua mais fria, o sereno mais fresco também nos poleiros, os galos das vizinhanças deram para principiar a cantoria na seqüência, cuidando de um ofício só deles. Ao lado do caminho, na entrada mais pisada, ia ficando a casa do Agenor, e o galo do Agenor cantou aqui encostado, firme no bater das asas e na emenda do cari-co-có. Galo índio, dono do terreiro, trouxe força na garganta e delongou os gritos do final bem compridos. Em seguida, na frente e onde a vista ainda não divulgava os vultos, cantou o galo correspondente. Mais longe, quase surdo, cantou outro correlativo, e outros cantaram com acatamento, provenientes dos lugares diversos e longe de se ouvir daqui, ficando para trás a casa do Agenor.

- No Agenor, vocês notaram – expõe o lavador, chamando a atenção dos meninos para um detalhe que só ele podia dar como certo: - A casa deles é um escuridéu sem tamanho, tendo essa gente ido passar o velório da noite com o pai de vocês. Gente prestativa que só. Aquele mais moço deles, o Reginaldo, logo vi nele o interesse de muitos que detestam, e acertei com ele a instrução das manhas de lavar defunto. Ainda verdolengo, guarda a cisma pelo trabalho, mas tem os talentos todos. Mais logo ou mais depois, começa a ser requisitado para atender os mortos dessas bandas.

Zezito tossiu espichando junto um gemido de prever cada trote mais perto de casa, onde o Alcidão há de andar para lá e para cá, espichando os olhos para o escuro da estrada, com a raiva dessa gente que não vem, desse lavador que demora... Com essa impaciência, esporeou o cavalo sem necessidade, constatado pelo lavador, quem viu o pretexto para repreender.

- É o Alcidão, seu Nino, o meu irmão mais velho, que já assumiu o lugar de exigir. A minha cisma é afrontar ele com a brabeza que era do pai, porque nós aqui vamos numa demora dos diabos!...

- Qual demora, qual diabo, hein? Justo quando a casa vem em ali! Chego lá e me largo em cima desse Alcidão, espiem vocês. Largue o Alcidão com as danuras dele, porque as coisas são do jeito que são, não como o Alcidão manda que sejam. E de mais a mais, o seu irmão é um esquentado e isso e aquilo, mas nunca atinou de lavar um defunto; tem de sujeitar na espera de quem sabe, que sou eu e que sempre fico pronto para atender longe, para mais de légua...

- ...Mas não tira pedaços aprender coisas mais distintas da pessoa, como saber lavar os defuntos, troço que todo cristão morre e logo um vivo sobra para a tarefa. Comigo, acaba sendo a obrigação de cada sujeito chegar um dia e encarar uma bacia de lavar um morto dentro.

- ...Não digo isso do seu pai, o meu compadre, que eu já tinha uma promessa de cumprir, e só abria mão, sendo eu o falecido antes.

Dois

Com essas preocupações de caminho delongado, um pouco mais apearam no terreiro iluminado por lampiões, e eram três horas da madrugada, com dona Nega correndo aborrecida para os filhos.

Havia o povinho por ali, espalhado em redor da casa, sentados nos bancos improvisados, amontoados em montinhos de pouca prosa, em ato de respeito todos quantos vieram velar o Caetano.

Seu Nino cumprimentou dona Nega com os pêsames e consolou mal e mal, porque era sua deficiência confortar viúva. Enrolou as mangas compridas da camisa de frio, passou os olhos pelo redor e achou de compensar o tempo perdido. Ralhou com o Alcidão:

- Quero agilidade com água quente. Uma lata de vinte litros, cheia pela boca. E arranje uma bacia grande à disposição. Os preparativos de lavar estão demais atrasados nessa casa de morto.

Ainda autoritário, chamou o Alcidão para responder o que mais vinha preocupado pelo caminho, mas guardado sem tocar muito no assunto a respeito, para não bulir com as tristezas dos meninos menores:

- Matinaram de tirar as roupas do corpo, antes do endurecimento?

O Alcidão baixou a cabeça, deu a entender que tiveram, sim, a invenção dessa providência.

E lavador foi ali, voltou aqui, era ligeiro, falou que tinha uma recomendação fora do caso, não vinha na lembrança, encafifou-se, andou no escuro do terreiro e mijou na cerca da horta, fechou a braguilha já vindo para os claros da casa, cruzou com dona Nega e acudiu:

- Ah, é isso mesmo. Ferva um chá quente de alho e mel para a tossinha grudada nesse menino do meio, com ameaça de pneumonia.

Viu a água no fogo, meteu a mão e provou a quentura, era morna, meia-meia. Foi no cavalo amarrado na estaca, buscou os petrechos na baldrana, outra vez requisitou os préstimos do Alcidão:

- Com tantas amolações na cabeça, ninguém vai olhar para os cavalos, mas eu fico com dó da tropa amarrada sem valia. Vá lá, Alcidão, e mande tirar os arreios e soltar no pasto, porque já cansou além da conta.

Estacou no meio do caminho, quando descia para a porta da cozinha, incluindo o Alcidão numa nova pergunta, até incomodado de não procurar saber logo na chegada, de importante que era:

- Mandaram quem no Lugarejo providenciar as velas e o caixão de defunto?

Alcidão achou ofendido de responder tantas perguntas impetuosas, sem rodeios de puxar primeiro os assuntos que antes amainam quantos os enlutados aqui da casa. Falou seco para o lavador, expondo a mágoa:

- Eu.

- E quando chega a encomenda? – emendou o lavador com o mesmo tom da importância, sempre direto, comunal para ele nessas ocasiões de autoridade só dele.

- As velas, já de-noite, eu adiantei um maço. O caixão vem no clarear do dia, eles me prometeram.

Os preparativos entravam nos conformes, segundo o entendimento do lavador. Mas havia outro nervosismo seguinte; sem delongas, exigia o esclarecimento. Sobre quem fizera as medidas do corpo. Sim, sem estranheza para a dúvida, quando todo mundo tem a memória do ocorrido na morte da velha do Chico Rico, aquela dona Zefa, de família com perequetês e tais. Mandaram um caixão que era isso e aquilo e tantos luxos de madeira, latão amarelo e mortalhas de seda; no fim, o que se viu foi a finada rica indo três léguas na rede para o Lugarejo, porque no caixão não tinham os espaços espichados, e foi lá na capela que dispuseram a defunta num de regulagens apropriadas.

Depois, impaciente com os andamentos da casa, retirou-se para os fundos e seguiu campeando.

- Essa mesa! – exclamou glorioso, como tendo descoberto o mais extraordinário achado. – Junte um companheiro, Alcidão... Ali o Reginaldo, vem cá, ô aprendista! Disponham essa mesa para o meio da sala, que é reforçada para pôr o corpo no velório.

Deu um pulo até a cozinha: nesse instante teve um palpite de tomar café, que as mulheres acabavam de passar, e mandou saber da viúva com qual roupa desejava enterrar o finado. A princípio, disseram que ela fez não com a cabeça, muito aborrecida por ter de acatar uma proposta, mas cedeu e dispôs-se do terno do casamento.

Tudo organizado, enfim. Faltava a derradeira ordem ao Alcidão: reunir na sala os presentes, para, em alta voz, dedicarem a reza do primeiro terço ao morto, continuando as orações por quanto gastasse o dever de lavar o corpo.

E o lavador assumiu com os petrechos a última etapa da missão, a mais respeitável, que era agora a intimidade do banho ao defunto, onde entra para o quartinho do morto e ninguém tem a licença de acompanhar, só o assistente, esse Reginaldo.

A porta foi taramelada e a luz do quartinho era sombria, de lamparina alumiando sobre a cadeira, onde a viúva permanecera sentada dias e dias, zelando da doença que levara enfim o marido. Seu Nino abeirou-se da cama e constatou o morto coberto pelo lençol branco, de fato já pelado das roupas. Assim, meio num escuro de luz baixa, confirmou confiante o desfecho do óbito, vendo os olhos murchos, mas não tão murchos, e a boca ressequida, mas não tão ressequida, e as juntas duras, mas não tão duras... Presunçoso, o lavador admitiu facilidades na empreitada, que o corpo do defunto era compreensivo de ajudar.

- Eu pego pela cabeça; você, gruda nos pés – ordenou ao assistente, até agora assombrado pelas aparências muito consumptivas, caquéticas mesmo, dando um defunto de carcaça esquelética, de ossos pontudos, de pelanca comprida.

O lavador contou um, dois, três... e já! Pretendiam pôr o corpo na bacia de água quente. Mas o Caetano abriu os olhos assim serenamente, acabado de acordar de um sono esquecido, e, sem negar a raça, como era o costume, destratou o compadre:

- Ai, ai, ai, ô lavador desgraçado. Sai daqui, urubu de tocaia. Guarda a tua bacia de ensopar defunto!

O assistente, esse Reginaldo novato e ingênuo, ele já ia se escafedendo assombrado, ia atravessar as paredes no peito, ia ganhar a amplidão do mundo onde os vivos são vivos e os mortos são mortos; ia desde hoje abandonar o ofício... Mas, o lavador que domina os fatos envolvidos na lavagem dos defuntos, ele bem antecipa conter a covardia do aluno verdolengo, e a tempo toma-o pelos fundilhos da calça, contraria as intenções da fuga.

- Espere aqui, seu aprendista – mandou ele numa recriminação de dentes serrados, para o vozerio do quartinho não superar o clamor da reza na sala. – Não me dê essa desonra aos de fora.

Com a calma só dada por Deus aos lavadores de defunto, seu Nino deslanchou a mansidão da prosa, pacato no zunzum, e convenceu o compadre lavar-se na bacia de água quente, bem esperta, para tirar o cheiro dos vomitados e outros odores da doença antiga.

- Ninguém vai querer ver o compadre desarrumado, quando vierem espiar suas feições, esquálidas como mudaram depois disso tanto desajeitado.

Pronunciava os pedidos numa doçura entremeada de voz de padre e de doutor, feliz e surpreso de rever o compadre como antes, rebelde e duro. Persuadiu-o de que vestir o terno do casamento daria gostos à comadre vê-lo refeito nas boas cerimônias. Depois, ainda arrumou o doente na cama. Penteou-lhe os cabelos finos, brancos, quase sem. Caprichou na barba comprida, alisou e jogou perfume de vidro.

O Caetano, apesar dos efeitos maléficos do câncer, agora fazia vista tê-lo mostrando as aparências mais suaves. O lavador convenceu-o desses atributos da formosura retocada, que assim todos podiam revê-lo sem sobressaltos nem rebuliços, porque o tinham dado morto, e que bom que era o engano geral.

De tal modo e o mais franco possível, aproximando-se do compadre como para um fraterno abraço ou, o mais exato, como para um definitivo adeus, foi demoradamente tapando-lhe as narinas e forçando a boca trancada com a mão forte e compressiva, tirando-lhe qualquer possibilidade de obter o ar. O Caetano, mesmo mortiço, principiou espernear sufocado, sem como respirar nem gritar socorro.

- Corre aí, seu rapaz – ralhou o instrutor ao aprendiz impressionado de novo com o que via. – Agarre firme essas pernas, não deixe debater a agonia.

Caetano foi parando manso; logo, já dormia quieto, desistente de brigar com as adversidades do compadre, da doença e da vida. Conformado, aceitou a derradeira posição, serena e deitada no leito de morte. O lavador constatou o fim, conferindo os olhos, a boca e os dois pulsos. Primeiro, devolveu a ordem ao ambiente assombrado e nervoso; depois, virou-se desgostoso e explicou para o Reginaldo:

- Rapaz, a gente carece de costume nisso aqui, a lida com os destampatórios desse ofício. Esse morto, saindo daqui a andar lá fora, já avaliou os destemperos dos vivos, que iam também virar num despropósito de correr a vida inteira, todos estatelados de medo de quem, já dado como morto, de repente pinta na sala assombrando como o defunto errante?

O assistente fincou o pé no velório e vigiou chegar o caixão, quando o sol já principiava clarear o dia. Nunca mais tirou os olhos de riba do falecido espichado na mesa, no centro da sala e rodeado dos parentes. Aprendeu na memória, nessa vez, quando morrer impede maiores transtornos.

(*) Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 30/10/2011
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