Jequitibá Torto

(*)

A Mulher achou prudente não dar o de falar, por isso não entrou na venda, um estabelecimento mal afamado por ser da zona. Daqui da beira da estrada, na sombra pequena do amendoim-de-bugre, escutava a prosa do marido com o vendeiro. Quem ensinava as instruções de como prosseguir adiante.

- ... Vão seguindo a légua e meia, direção reta até o Facão de Areia, onde por ali principiam as picadas nos matos; adiante, a virada do caminho mais batido; negócio de duzentas braças abaixo, certo de horas bem adiantadas, noite adentro, é o caso de tomar cuidado do lado de lá da pinguela do corguinho, porque tem o jequitibá - um jequitibá torto, inclinado em riba do carreador. Apegado, a porteira espera mesmo ali. Já no lado de lá, as terras do Olegário.

Olegário Justo, um retirado para lá dos cafundós, quem aqui na Venda da Forquilha há coisa de semana apeou para as compras da safra. Em casa, para a mudança de lua, Dona Mara esperava a nascença dum tigüerinha. Decorrente disso, o pai, estando envolvido com esses dias, recomendou ao vendeiro despachar quem procurasse serviço de roça.

- Home’, vigie a hora. Vamos dar no pé, para não andar com a lua.

*

- Dona Ricota, já não passa da hora de ter nascido?

A Parteira, em indo pela varanda à horta recolher outras ramagens, balança a cabeça que não. Olegário Justo, entretanto, percebe quando faltam à Parteira as palavras da certeza, vendo-a chocha e quase falida nos sistemas dela.

Impacienta-se.

Diferentes os berros da Mara, loucos e quase desorientados. Outros meninos nascidos ali na mesma casa deram trabalho menor à parteira.

A lua crescente, bem branca, ia subindo pelas copadas do quintal. As terras por ali todas caladas, no aguardo de chorar a criança. Entrementes, só a Mara gritando e gritando as dores esmorecidas, atrasadas.

Mais logo, a Parteira abeirou-se. Jeito não. Esgotados os trabalhos, agora só o doutor.

- Ixe, a estas horas, dona Ricota?

Espremida, a parteira quem justificava: criança graúda, quem sabe a cabeça virada, ou a lua pouco favorecida, enfim, seja lá qual o embaraço, o caso é de correr atrás do recurso.

Olegário ainda mirou para a altura da lua, desalentado. Pior são as altas horas. Os riscos do caminho. Toda espécie de empecilhos. Além do mais, tem aquele jequitibá torto em cima da passagem...

Dona Ricota mordeu um beiço, desviando olhar para o nada, agora considerando os motivos do Olegário.

O jequitibá, segue ele ponderando, pode nem ser verdade. Contudo, os casos... Já, de começo de prosa, ali um jequitibá torto, a natureza errada. Jequitibá não dá torto; se já deu um, igual aquele, então é caso de suspeitar. E, depois, quantas gentamas passando adiante os relatos desde os conhecidos mais antigos? A catinga de bode pelas bandas do jequitibá, com o fedor dos ventos quentes, outras horas gelados, bem ali perto. E a passarinhada dos piados mais nefastos da noite, onde quantos fulanos já escutaram, vindos das galhadas escuras daquele jequitibá?...

Dona Ricota, por força da consciência, voltou conferir as dores da dona Mara, muito suada e fraquinha lá no quarto. O Olegário permaneceu na varanda, cismando. O urutau cantava, era melancólico, muito dos maus agouros.

A Parteira veio rápido e intrometeu-se:

- Os casos de bode chifrudo quando trepa naquele pau; as conversas de noiva alumienta, de grinalda e sem as feições do rosto; os boatos do caixão de defunto atravessado no caminho, impedindo de passar... Tudo isso, seu Olegário, ocorrido no jequitibá, agora é o de menos, porque dona Mara segue piorando; quem garante se não finda junto com a criança entalada.

Sacudido, Olegário constatou a emergência. Esse jequitibá torto pode ser besteira pura dos que vivem com tempo de inventar casos assombrados. Catou os poucos petrechos da viagem, ia saindo. A Parteira mandou as recomendações, porque, quem sabe se ali chegando pelos cantos do perigo e constatando o treco mal arranjado no pé do jequitibá, Olegário assim procedesse para o bem de requerer o entrevero. E ensinou de fazer o chamamento para si o espírito da assombração:

“- Espírito do Além, responde porque vem,

se é de Mal ou de Bem.

Sendo de Bem, eu atendo;

e do Mal, também”.

Dito assim, a voz altaneira e encorajada, então a assombração qualquer, quando antes de morrer era gente, revela as necessidades de andar vagando pelo mundo, depois desaparece num clarão azul e até bonito de se ver, some para o descanso em paz.

- Isso é só besteirada, dona Ricota. Com a assombração não tem conversa fiada que dê o sossego.

No que a parteira perdeu a paciência:

- Besteira ou não, de assombração ou de Jequitibá-torto, o que eu conheço bem é um homem descrente e uma criança quando entala e morre sem o doutor.

Olegário engoliu apertado, amargo e adstringente, soltando um suspiro fundo, com um frio gelado lhe escorrendo pela espinha desde o cangote. Dona Mara, fraquinha no gritar de dor, ele saiu pelo caminho de picada, esporeando uma mulona preta e sestrosa.

Urutau, decerto o passarinho de sentinela trepado num toco, cantou triste:

“- Foi, foi, foi...”

A Parteira, doeu nela.

* *

À hora da merenda do dia seguinte, em casa, a criancinha nova chorava nas primeiras mamadas. Dona Mara convalescia, preocupada pela demora do marido, porque Olegário ontem indo atrás do recurso, ninguém mais dera notícias dele.

Porta da sala, sombra da amoreira-branca e tomando chá com biscoito, o casal de peões ansiava por conhecer o patrão e acertar os acertos do serviço.

- Destino besta, Home’. Espie agora no caminho um moribundo rasgado. Anda pior que a gente e decerto é um também querendo roça para os lados de cá.

Chegando em casa, era o Olegário, sem o doutor e escangalhado. Dona Mara quem o acudiu, com a Parteira dando água e aplicando salmoura nos riscados das feridas vivas pelo corpo.

Avexado, o Olegário seguia descrevendo as dificuldades da noite, e os assuntos foram aclarando e ganhando ligações. Porque, logo saindo ontem, topou de cara com o entrevero no meio da estrada, ali no jequitibá torto, afamado.

Tinha dado noite alta, o Home’ e a Mulher, cansados da andança, percebiam os indícios de estarem nas redondezas das terras do Olegário, conforme a informação da Venda da Forquilha. No trecho da estrada onde o jequitibá cobria, a lua no céu formava a sombra escura, o Home’ avisou de dor-de-barriga. Derivou-se para o pé de pau, soltou a pantomina dos gases e aliviou os males de dentro.

Frouxidão nas pernas, a Mulher achou de descansar agachadinha ao relento da passagem, no exato instante quando a porteira bateu e um desconhecido se espantou com os gases surgindo do Jequitibá. Ela assuntando, agachada e quieta, despontou da porteira a ladainha dum proseado estranho: “- Ói, Espíritos dos Aléns, que estás na sombra do jequitibá, já me diz se é de Mal ou de Bem. Se é de Bem, fala a tua súplica e eu atendo...”

- Home’, espie um estranho aluado me falando besteiradas no caminho.

Para ser justo, nem o Olegário e nem a mulona preta vinham preparados para ver a assombração retrucando. Ele perdeu o de cor das falas. Estupefato, cravou as esporas na virilha da mulona, quem pulou para um lado aonde o Olegário vinha do contra. Caído mas um pé enganchado no estribo, a mula estourou mato adentro, com o Olegário de-arrasto. Quarenta braças arrebentando os cipós e as taquaras, o arreio cedeu. Ali, nem a mula, quanto menos o Olegário, ninguém parou de correr no desatino. As tiras das roupas, até do couro da pele, tudo foi enroscando nas guanchumas de espinhos e coivaras, mas só queria ter as pernadas quando o carregassem o mais longe do jequitibá.

Alongado na quiçaça, os olhos esbugalhados pelo resto da noite, ele custou demais recompor as coragens de, de-dia claro, voltar para as terras de casa.

(*) Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 30/10/2011
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