Bodas de Ouro
(*)
Louro passou parte da vida arredio e cochilento no poleiro, já velho. Assanhado era no começo, aceso e cantador.
- Currupaco-papaco, mulher do macaco.
Pidonho de coisas estrambóticas, enredadas:
- Dá o pé, Louro. Dá papá, Louro.
Perguntas enfileiradas:
- Louro, quer café? Quem viu a Belinha?
Belinha detestava o papagaio. Nos malabarismos, empoleirado nos bambuzinhos-de-pescar por sobre os caibros do telhado aparente, borrava verde lá de cima, emporcalhando cadeiras e mesa aqui no chão. Nojento. Requeria da Belinha cuidados e desesperos. Porque, entre ele e o namorado dela não havia jeito. Um que vinha visitá-la, outro aprontava ciumeira. Louro assobiava, estumando Cacique, o cachorro.
- Pega, pega. Morde o safado.
Belinha morria de vergonha, trincava de raiva. O namorado insistia em ficar à vontade, sem demonstrar constrangimento. Puxava a cadeira, mas a Belinha punha a mão na cabeça: “- Não sente aí.” E corria com o pano, limpar a borrada verde.
- Pega, Cacique. Morde o macaco.
Cachorro biruta entrava espaventoso, prestativo. Saía escafedendo e mancando dos quartos, por causa da vassourada. Papagaio, já de castigo, protestava na parreira de chuchu, onde ninguém o via, camuflado. Cantoria inconformada:
- A perereca da vizinha está presa na gaiola...
Corada, Belinha tapava os ouvidos.
- Xô, perereca!
O pior da história vinha de muito: Louro era xodó da dona Santina, de quem recebera proteção desde filhote. O marido quem viera de boiada, chapéu na curva do braço, trazendo dentro a surpresa para ela. Tirado num ninho perto do Rio Grande. A Belinha nem existia. O papagainho pelado abrira o biquinho e esperara mingau. Dona Santina preparava do melhor fubá de pilão, e o bicho deslanchara criando o verde das penas e passando ao falatório de tudo:
- Prutaco-tataco, mulher do macaco. Passa boi, passa boiada: tem morena prendada. Dá o pé, Louro.
Belinha crescendo, papagaio formado ia ampliando o repertório de tolices. Porque dona Santina só permitia as amenidades.
- “Se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar...”
A menina vestia o uniforme, saía para a escola. Um alívio para ela. O papagaio já lhe era impertinente.
- Louro, quem viu a Belinha?
Quando concluiu o grupo escolar, Belinha arrumou desculpas, indo aprender costura e demorava.
- Quem viu a Belinha?
Na volta, constrangida, mãozinha dada ao namorado, sentava no alpendre.
- Pega, Cacique. Morde o molenga.
Deus sabia quanto ódio guardado por aquele papagaio. Dona Santina mandava socar no pilão o milho de fubá. Belinha tinha crises de raiva. À noite, vinham os sonhos: Louro voando, caindo dentro do pilão, ela socando com força as penas verdes, as tripas virando farofa.
Só que o tempo passava, Louro comprometia o afazer da Belinha e os interesses da casa. Num domingo de missa, o papagaio já destampava o anúncio:
- “Acorda, Maria Bonita; acorda, vem fazer o café...”
Belinha costumava jejuar para a hóstia. E, quando regressou da igreja, eis ali um treco e a casa atopetada de vizinhos. Pois dona Santina, conforme eles diziam, desatinou pela rua gritando por santos e todo o mundo, acudissem o Louro. Recorrendo-se aos petrechos de pescar, salvaram o bicho caído não se sabe como dentro da privada. E ali o talzinho, muito feiosinho e grudadinho de coisas da fossa, ainda aguardava alguém lavar o cheiro, quando os outros não tiveram a devida coragem.
Belinha, quem há muito perdera a paciência, agora lhe ia o estômago. Que nojo. Vomitou. E fez a jura de se livrar do martírio. Casou-se com antecipação.
Dona Santina precisou insistir com o genro: não mudassem para Goiás. Poderiam morar juntos. Ela, viúva. A casa, suficiente. A Belinha, companheira...!
Porém, o papagaio.
Dona Santina soluçava muitas vezes de recordar da filha. Louro já se fizera um melancólico. Arredio.
- Quem viu a Belinha?
E a pressão alterava. Problemas de tireóide também. Cada vez mais preocupante, o genro então fez visita. Chamado um médico, quem viu o Louro e pasmou. Genial. Dona Santina argumentava com a voz mais fraquinha: se não fosse xodó, abriria mão, oferecendo-o como recompensa ao doutor.
Mas era um filho, a mesma coisa. Anda tristonho sem a Belinha, mas já se viu mais atencioso.
Dado receita, doutor Manoel recomendou dieta, pouco de sal, pouco de gordura. E, à saída, beleza de papagaio. Conservasse o bicho.
Sucederam crises. A vizinha assumiu os chamados ao médico.
- Dá o pé, Louro. Currupaco-papaco.
O doutor mostrava afeição:
- É um bicho bonito, dona Santina. Se não o tivesse por considerar um filho...
Para a dona, o papagaio era mais que um filho. Lembranças do finado, aí bem vivas. Deus o tirou depressa. Ano vindouro fariam as bodas de cinqüenta anos no casamento.
Uma manhãzinha de domingo, dona Santina sentia-se melhor. Era a data das bodas de ouro. Debruçada no peitoril, fitava longe, para além do campinho dos meninos, mais para lá, num lugar de coisas só passadas, as melhores. Toda hora, a impressão de escutar as ladainhas do Louro.
- Quem viu a Belinha?
Já de-tarde, do campanal, vinha a Ave-Maria do alto-falante da catedral. Derramou lágrimas de saudade também do finado.
Apenas Cacique por companhia, ali debaixo do quarador, caduco e abanando mutucas.
Nem a Belinha, quem nunca suportou mesmo o papagaio. Decerto não compareceu porque nem sabe ainda, foi-se o Louro. Vendido ao doutor Manoel, quem fez o preço.
Aniversário de casamento, dona Santina queria demais pôr roupa nova e esperar a filha com o genro. Um vestido de bolinhas. Sem o luto. Bonito, como deu o dinheiro.
(*) Conto integrante do livro "Fulanos Sicranos", 2ª edição.