Bolinhas Pretas

(*)

Ditinho Pelego enchia o tempo aturdido com o mundo da lua. Não fazia turma. Nem no grupo escolar, antigo prédio da Prefeitura, aonde ia no primeiro ano. Repetente, não evoluía para além disso.

Sala de aula: que estilingue e nada; acenava no ar gestos de apedrejar os pardais esvoaçando ao léu pelos caibros sem forro. Ria, porque acertava a mira:

- Vupt-tof!... Vupt-tof!...

E encenava a queda livre da ave abatida, caindo fofa no ladrilho:

- Tiuimmmm... Puf!

Dona Meire, sempre com a cicatriz no queixo, proveniente de um desastre de infância, conferia os movimentos do aluno rebelde. Parecia duvidando se, dessa vez, não era mesmo verdade: “– Ditinho insistente, agora fuzilou o pardal”.

- Tiuimmmm... Puf! Também morreu, danado.

Ditinho perdido. Desgarrado da turma do grupo. Repetente. Dona Meire, professora do primeiro ano, não se preocupava mais. Diretor quem insistia, o infeliz não tem arrumação, mas é pior na rua virando vagabundo.

E Ditinho nem para desconfiar, Dona Meire não se dava mais por ele. Sobrava-lhe inconsciência de nenhum significado na escola. Agia o suficiente para viver em paz.

Chegava atrasado. Para não se dar à disciplina de andar em fila do pátio até a sala. Depois, lá na frente, a professora mandava que abrissem os cadernos. Ditinho fazia desenhos de bolinhas pretas em vez de escrever o aeioú:

- A, de abelha. E, de elefante. I, de igreja...

Soletrava junto, mas com grafia sem correspondência, porque punha dedicação às bolinhas. Bolas grandes, bem grandes. Bolinhas pequenas, tão pequenas. E bolas intermediárias.

Dona Meire havia se acostumado. Indo e voltando entre os meninos de sala, corrigindo os cadernos, pulava o Ditinho. Sem perca de tempo com o repetente.

- Professora, viu o meu?

Bolas cheias, pretas, brilhantes. Bolas suaves, apagadas, quase vazias. A página tomada. Caderno repleto.

Ao sinal do recreio, todos se colocavam em fila para cantar antes “quem-quer-pastorar”. Ditinho azeitava e ninguém percebia.

Entretanto, numa das escapulidas, não retornou do recreio. Denunciado, Diretor bateu atrás e trouxe-o na cincha, arrastado pela orelha. Para servir o exemplo, entrou na sala a poder de bufetes, daqui da porta até se sentar na carteira. Arregaladinhos, os alunos viram o Diretor saindo e o Ditinho ficando debruçado, mas sem choro nem reclamação, só enfunado.

De quando em quando, era costume esse amuo. Gungunava. Mantinha o desprezo pelo resto. Comia o toco do lápis, desenhava bolas, perseguia os pardais. Vivendo com ele. Gungunando. Predestinado a repetir o ano.

Dona Meire, acostumada, ignorava passivamente.

Diretor só o queria em sala, para não se tornar vagabundo de rua.

Até o dia, quando acumulou faltar à aula. Doença?

Corridos os dias, e Ditinho que não vem? Dona Meire observou. Vadiagem?

Com os tempos, queixa ao Diretor. Ditinho ausente importuna mais. Falta de coisa entre os alunos. Diferença.

Trouxeram-no.

Veio na cincha, arrastado pela orelha, como eram os sistemas da diretoria.

Mas, quando acabou a saraivada de sopapos, avisou o Diretor de matar se quisesse, mas não ia abrir o caderno.

Fitou Dona Meire, não ia desenhar bolinhas.

Mirou os caibros do telhado, não ia mexer com os pardais.

Nem nada.

Se ninguém sabia, nessa semana o pai na Santa Casa vinha perrengue e deu estouro na úlcera.

Agora ia ajudar a mãe, na viuvez dela.

Os colegas da classe se entreolharam, e os olhos alumiavam de lágrima rasa. As carinhas inocentes, prestes ao desatino do medo, receosos de serem um dia como o Ditinho, agora sem o pai.

Ditinho, não. Nem um pingo de desdém. Nem de inferioridade. Nada. Quando o sinal tocou, o grupo escolar presenciou quando ele sumiu.

Mas, nem tardou tanto, Ditinho tem andado por aí. Perambula as ruas, as estradas, os quatro cantos do Lugarejo.

Um pelego.

Encardido e vadio.

Sustentando a tarja de luto na camisa e o embornal cruzado no pescoço, importuna com pedidos de adjutório para a mãe viúva. E reclama: voltando de mãos abanando, sem as esmolas, em cada vez ele apanha de vara verde, porque são as ordens do padrasto.

(*) Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 30/10/2011
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