Café da manhã
Acendeu a luz pelo costume da claridade. Com passos arrastados, atravessou a cozinha e abriu as janelas, deixando que o forte sol matinal invadisse o ambiente. Retornou e deixou que a mão caísse sobre o interruptor, desligando a lâmpada sem alterar a luminosidade da área. Ficou parado ali por mais alguns instantes. Seu corpo e sua mente não haviam acordado por completo e aproveitavam cada oportunidade para parar e voltar a dormir.
Reuniu todas as forças que tinha e preparou um forte café. Percorreu os armários e a geladeira atrás de acompanhamentos e frutas, e postou um completo e incrivelmente simétrico banquete para seu desjejum.
Sentou na extremidade de uma larga e comprida mesa retangular, de costas para a janela para não se cegar com a luz que entrava por ela e poder ficar a vontade. Além disso, desfrutava de uma boa brisa por trás e uma agradável contra corrente de ar provocada pelos armários próximos. Ainda podia ver todas as outras cadeiras. Estava no centro e na extremidade ao mesmo tempo. Aquele, definitivamente, era o melhor lugar.
Por último, colocou os talheres cuidadosamente ao lado do prato vazio e passou a mexer e remexer no que estava sobre a mesa para garantir a simetria. Após alguns minutos na tarefa desnecessária desistiu e decidiu começar a comer, mesmo um pouco descontente com a diferença de cores entre o pote de geléia e manteiga (que dividiam o centro da mesa). Serviu-se com o máximo de cuidado para manter a posição das coisas, relaxou e deixou sua mente voar a cada pedaço de pão.
As memórias, favorecidas pelo ambiente a sua volta, o levaram a uma festa de natal que ocorrera há muitos anos. Aquela ainda era a casa de seus pais e podia entregar-se às futilidades da infância. Os cômodos estavam cheios de parentes e amigos que comiam e bebiam e diversas crianças corriam por todos os lados. O prazeroso caos tradicional de fim de ano.
Como sempre, cuidava de realinhar e redistribuir os copos, bebidas e doces conforme estes eram consumidos. A mesa (que agora recebia seu desjejum) permanecia com as guloseimas devidamente equilibradas e distribuídas, com o mínimo de falhas que era possível. Afinal, ainda era jovem, não podia se forçar tanto. Se ainda houvesse este tipo de reunião na casa a organização estaria perfeita.
- Uma moeda por seus pensamentos. - Seu déjà vu foi interrompido por uma doce voz que lhe saudava.
Parada à porta, uma linda moça de cabelos e olhos castanhos olhava fixamente para ele. O corpo dela estava coberto apenas por uma curta camisa regata cinza e uma discreta calcinha, deixando suas pernas sensualmente a mostra.
- Apenas voltei alguns anos no tempo.
- Hmm - Balbuciou a jovem, indo se sentar na cadeira que estava livre logo à esquerda, próximo ao jovem. - Nostalgia nunca foi muito seu perfil.
- Vejo que você não me conhece mais tão bem. Antigamente nem precisaria te dizer em que pensava.
- Você me afastou, fez com que me afastasse de você. Acreditou nas histórias e conselhos de sua família e deixou de falar comigo. Já faz muitos anos.
- E eu ainda não acredito que voltei a vê-la. Devo estar muito desesperado.
A jovem lançou-lhe um olhar agressivo, bufou e ficou encarando-o por alguns instantes antes de apoiar sua mão docemente sobre a do jovem. Este até pensou em recuar, mas hesitou.
- Muita coisa aconteceu. - tentou reconfortar a jovem.
Havia muita verdade embarcada naquelas palavras. Muita coisa acontecera nos últimos dias. A vida pacata e doce deixou de existir e um caos assumiu o lugar. Nunca sua mente esteve em um turbilhão tão intenso e as coisas só pareciam piorar. Não havia uma luz no final daquele túnel, apenas escuridão.