DO OUTRO LADO DA PORTA
- Papai!
- Sim.
- Volte logo. Mamãe está muito doente.
- Mas o que ela tem?
- Não sei. Volte logo. Agora, por favor.
- Eu vou para a rodoviária...
Enquanto eu guardava na mala as roupas espalhadas pela cama, cadeira, mesinha e chão eu sentia o coração apertado.
O que teria acontecido? Por que Izabel não dissera nada sobre a doença de Helena?
Na próxima semana faremos trinta e oito anos de casados e durante todo esse tempo, Helena não teve tempo para adoecer. Sempre cuidando dos filhos, da casa, dos bordados para fora, agora dos netos.
O que teria acontecido que justificasse esse chamado assim no meio da noite?
Quando cheguei à Estação Rodoviária, só tinha um morador de rua, com seu cachorro, dormindo num dos bancos. Fiquei parado olhando a movimentação das mariposas em torno da luz baça por conta da sujeira.
Teias de aranha pejadas de poeira e de fuligem dos ônibus.
Os faróis do primeiro ônibus surgiram na estradinha de acesso ao terminal. Parou ruidosamente. Desceram duas pessoas e uma delas me perguntou onde podia tomar café.
- Aqui, em canto nenhum. Está tudo fechado.
O empregado local, da empresa, surgiu da escuridão com o cabelo em desalinho, colocando a camisa para dentro das calças.
- Preciso de uma passagem. Para o Recife, por favor.
Sentado na poltrona com o cinto atado tentei dormir, mas a imagem de Helena não me deixou conciliar o sono.
Os primeiros clarões do dia revelaram os contornos da mataria. Cidade após cidade, a capital ia se aproximando. Ou seria eu quem estava me aproximando dela?
Isso é relatividade, da física de Einstein...
- Dona Helena está melhor?
- Não sei, estou chegando de viagem agora.
- Ham! Eu pensei que o senhor estava vindo do hospital...
- Quer dizer que Helena está internada?
- Está sim, a ambulância veio buscar ontem logo cedo...
Coloquei a mala sobre o sofá. O mundo estava rodando em minha frente.
- Ainda bem que você chegou papai.
- O que houve com sua mãe?
- Infarto. Estava na UTI.
- Vamos para lá.
- Não adianta mais. Mamãe morreu esta noite. Nós vamos para o velório no cemitério.
- Já avisou aos seus irmãos?
- Já. Eles chegarão ao meio dia.
Depois do sepultamento fui para a casa de Izabel. No dia seguinte os filhos que tinham vindo de São Paulo para o funeral da mãe, voltaram para suas casas e eu fui para a minha.
Os dias longos só faziam aumentar a ausência de Helena que se tornava quase insuportável quando anoitecia. A solidão dói.
- Quem é que está cuidando da casa para o senhor, seu Pedro?
- Eu mesmo.
- Homem não sabe fazer isso! Vou mandar minha faxineira fazer uma geral. O senhor concorda?
- Pode fazer. Tanto faz.
- Que tristeza é essa, homem?
- Helena faz muita falta...
- É. Mas o senhor está vivo. Precisa sair de casa e se distrair.
- Com a morte de Helena, as coisas perderam a graça. Sair de casa para quê?
- Para viver. O senhor ainda é muito jovem para se internar em casa. Se sua vida com dona Helena foi boa, mais um motivo para começar de novo e fazer outra mulher feliz. Geralmente seu Pedro, os casais se suportam. Vivem na mesma casa, mas não vivem juntos. São infelizes como eu.
A partir desse diálogo as nossas conversas foram ficando cada vez mais frequentes e cada vez que conversávamos dona Tereza me chamava para ir à igreja dela.
Eu nunca fui muito com a conversa de protestantes. São chatos.
Acham que conhecem tudo e que são os donos da verdade.
Mas devido à insistência e também por não ter nada para fazer, enquanto não estava viajando, eu fui.
Os membros da igreja me receberam com a cordialidade de quem recebe um amigo que esteve fora por longo tempo. Conversamos sobre vários assuntos alheios às religiões. O pastor fez questão que eu sentasse ao lado dele e me pediu para ler um trecho da bíblia sobre o qual, ele discorreu com facilidade, numa fala breve e cheia de eloquência.
Pela maneira gentil como fui recebido e, principalmente, por não ter sido alvo de doutrinação prometi voltar e fui lá tantas vezes que terminei me associando como membro efetivo. Temos reuniões às terças, sábados e domingos.
Por conta dessas idas e vindas à igreja, a dona Tereza foi aos poucos preenchendo o vazio deixado por Helena e num dia ela chegou a minha casa com o rosto deformado, um enorme corte no couro cabeludo e toda banhada em sangue por conta da surra que o marido enciumado havia lhe dado, nós fomos à delegacia do bairro dar parte por tentativa de homicídio e a dona Tereza mudou para a minha casa.
Havia chegado a minha vez de retribuir o favor que ela fizera, me retirando daquela depressão na qual me refugiara por causa da viuvez.
Esse contato mais aproximado me alertou para o fato de que eu estava apaixonado por ela e num dia em que estava fazendo um dos últimos curativos em sua cabeça, lhe revelei todo meu amor.
Ela ouviu tudo em silêncio e quando terminei, ela pediu que sentasse junto. Segurando minha mão, deitou a cabeça em meu ombro e disse:
- Seu Pedro, eu sempre amei o senhor. Toda vida quase morria de inveja de dona Helena por ela ter a felicidade que eu nunca tive nesses quase trinta anos de casada com Manoel. Se o senhor quiser, eu entro com o pedido de divórcio litigioso e nós nos casamos.
A diferença de idade entre nós é de quase vinte anos.
Meus filhos no início foram contra que eu casasse com pouco mais de um ano de viuvez.
Minha filha esteve em nossa casa com insinuações de que já havia algo entre nós enquanto Helena estava viva, mas isso nunca ocorreu.
Os filhos de Tereza me aceitaram sem fazer perguntas e os meus filhos que moram em São Paulo, depois que viram a alteração que o amor fez em mim, aceitaram a madrasta com alegria.
A resistência que Izabel tinha foi dissipada quando foi para a maternidade ter Pedrinho, Tereza mudou para a casa dela e agiu como se fora sua verdadeira mãe.
Por tudo isso hoje somos uma família feliz, nossa casa é sempre frequentada pelos nossos netos e até pelo filho do outro casamento de Manoel que, mesmo morando noutro Estado, vez por outra nos visita.
Afinal ele é o pai dos filhos de minha mulher.
- Pedro, meu amor, venha tomar o caldo verde enquanto está quente...