Relance

Ela fumou um cigarro de maconha e com a cara amassada pelos percalços da vida surgiu na minha porta. Parada, em pé, muda e inerte. Um resto de ser alimentado por mentiras e devassidão.

– Diniz.

Ouvi meu nome com sentimento duplo. Pena e culpa. Nada tinha com aquele ser, senão a missão de ouvi-lo em suas confissões mais íntimas. Daí a pena. E também por diversas vezes alimentá-lo em sua gana pelo prazer entorpecente da folha canabis. Daí a culpa.

– Diniz.

Abri os olhos e a porta, e contemplei aquele descaso de pessoa.

– Vou-me embora daqui.

Não respondi. Não a convidei para entrar. Não prometi nada.

– Me ajude.

Quis morrer e quis ter mais forças. Olhei de novo e nada disse. Ali parado apenas ouvi.

– Me coloque num ônibus. Vou a qualquer lugar.

Saiu de minha presença e me mandou um adeus de dedos magros. Voltei para dentro e ela sumiu na escuridão de suas desgraças. Voltaria em breve.

– Diniz.

Estava com uma sacola nas mãos e, pendurada às costas, uma velha mochila de tecido com alças simples. Uma muda de roupas, um isqueiro e um saquinho, provavelmente um resto da erva.

– Me leva.

Peguei o carro e no trajeto não a olhei. Fiquei dirigindo devagar como se quisesse retardar aquele momento a fim de pedir, quem sabe, perdão por tantas falhas. Um silêncio se fazia constante e ela fixa com o olhar distante.

– Posso fumar?

Retirou da sacola plástica um maço amassado de cigarros e acendeu um dos vermes. Puxou a primeira tragada, a segunda e encostou a cabeça no vidro. Viu a paisagem, sorriu para o vazio e chorou por dentro. Uma tristeza que invadia a mim. Perceptível como o furo do espinho da roseira.

Descemos e fizemos as burocracias. Ficamos a espera do transporte que a levaria para algum lugar que só ela tinha em mente. Sua terra natal e suas lembranças. O que sobrou de sua vida e que ficara para trás. Um remorso por não ter vencido a quis tragar, como a fumaça que o pulmão recebia. Calada, remoía as dores.

– Vou ali.

Entrou no ônibus e eu a vi acomodar-se na poltrona. O móvel era quase um afago materno. Era sua busca real pela felicidade. Se a teve, não sei. Voltei para o meu mundo e nunca mais soube dela.

Era assim a vida de alguém que nunca conheci.

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 25/10/2011
Reeditado em 18/06/2018
Código do texto: T3297743
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.