Cervejas, Vodcas & Vãs Perguntas.

Eu estava na minha.

Bem, como ficar na sua dentro de um bar? Mesmo que seja o mesmo de sempre.

O cenário eu já descrevi para vocês. Balcão e algumas mesas espalhadas pelo salão. Uma prateleira cheia de garrafas e tentação. Salgados mofados na estufa e vidros de rollmopes . Ou seja, uma gloriosa espelunca como outra qualquer. A única diferença ali é que os idiotas mal educados dos antitabagistas não tinham vez. Os freqüentadores tinham protestado desde o primeiro dia dessa odiosa lei municipal e tinha surtido efeito. “A voz do povo é a voz de deus”?

Vá sonhando. Aliás, não acredito em deus. Não nesse deus que colocaram aí. Pode crer. Vamos em frente. Já estava na segunda cerveja, na segunda dose de vodca e no terceiro cigarro. Os ombros já não doíam tanto. Eu bebia relativamente rápido. Estavam por ali dois ou três habitués que não me incomodavam em absoluto. Na tevê rolava uma competição de nado sincronizado feminino e eu não estava nem aí para as pernocas das moças. Minha fase de tarado tinha passado há muito anos. Culpa das putas, claro. Quando o sexo é fácil fica meio chato. Quando é difícil e você consegue depois da quinta ou da sexta trepada perde o interesse na fêmea. Essa é a minha natureza. Aos 43 eu estava sereno e tranquilo. Carlo Malta sereno e tranquilo? Nem imaginava quanto tempo iria durar isso. Como eu estava dizendo eu estava na minha curtindo meu traguinho inofensivo e acendi mais um cigarro. Uma menina que morava no mesmo condomínio que eu, entrou, cumprimentou-me com um beijinho no rosto, comprou seu maço de cigarros e saltou fora. Fiquei vadiando por ali. Quando chegou aquele cara enorme de camisa vermelha. Não era difícil descrevê-lo: um metro e noventa, uma barriga começando a crescer, cabelos louros curtos, olhos castanhos esverdeados e pelo jeito que adentrou ao boteco eu sabia que ele era burro, grosso, ignóbil, arrogante e metido a malandro. O curitibano típico. Estava na cara dele e em letras garrafais que era problema. Eu não aprendo.

Enquanto ele se encaminhava até o balcão eu pedi outra cerveja. Veio logo e me servi. Deixei a espuma branca baixar. Eram cinco e quarenta da tarde. Horário de verão. A mesma papagaiada inútil de sempre. Porque os políticos não fazem nada que presta? Porque não legalizam a maconha, não incentivam o turismo sexual para banqueiros alemães pervertidos despejarem seus euros por aqui, não descriminalizam o aborto, legalizam os cassinos e lançam nossos livros de graça? Porque isso não dá lucro e nem crédito para ele perante o eleitorado. Precisam inventar uma pancada de impostos novos e leis discriminatórias para angariar votos. Ás vezes esqueço-me onde estou. Não lembro onde li certa vez que o Paulo Coelho tem problema para escrever em primeira pessoa. E fico pensando como esse senhor consegue emplacar tantos livros. Pense nisso por cinco segundos e eu lhe encaminho ao hospício mais próximo para você ganhar quantas doses de amplictil o seu psiquiatra resolver lhe ministrar. Vamos aos fatos. Chega de enrolar meu público O que eu quero contar é rápido.

O cara parou ao meu lado e fez seu pedido. Acendi mais um cigarro, dei uma deliciosa tragada, inalando e depois exalando a fumaça azul pela boca formando um belo halo. Virei minha vodca cheia goela abaixo e sem fazer cara feia pedi outra. Essa porra de Word do meu computador não está funcionando direito faz alguns dias. Chegou minha bebida. Senti alguém me olhando fixamente. Odeio gente me olhando. Parecem vacas. Sem querer ofender as vacas. Gente me olha feio onde quer que eu vá. Porque não cuidam das suas vidas medíocres? Nunca vou compreender. Será que sou um alienígena? Devo ser. Mas minha nave ainda não veio me resgatar. O cara continuava olhando e eu virei o rosto para ele. Baixou a cabeça e deu um gole na sua tulipa.

-O que você está me encarando? Foi o que me disse por fim.

-Olha cara. Você é que começou esse joguinho.

-Que joguinho. Do que você está falando?

Desisti. Terminei minha cerveja. Pedi outra e outra dose e fiquei pensando que a conta dessa noite iria para a estratosfera. O cara puxou assunto novamente:

-O que você faz? Quis saber.

-Sou redator. Caí na esparrela de lhe dizer a verdade. Tinha ficado no computador a manhã e a tarde toda redigindo resenhas e mais resenhas sobre o Grande Prêmio Paraná que seria a grande atração da cidade no fim de semana e estava cansado demais para mentir.

-Redator? Ele disse. – O que é isso?

-Escrevo para um jornal e tenho dois livros de contos lançados. Esclareci.

-Escreve como?

Como não entendi a pergunta coloquei os dedos no ar e digitei imitando os movimentos que fazia diariamente. Os olhos dele entraram numas de pura fúria, ódio & rancor naquele exato instante. O cara era – em teoria – três centímetros mais alto que eu. Mas para quem tinha morado em tudo quanto é bocada brava de Curitiba mais da metade da sua vida aquele sujeito para mim não passava de arraia miúda. Tem gente que bebe e escreve. Eu fumo e escrevo. Tem gente que jejua dias para escrever. Eu prefiro sentar-me ao PC com um lauto almoço no bucho ou um sanduíche de atum bem arregado e uma cerveja preta.

-Escreveu um livro? Espantou-se o cidadão. – Você não me parece grande coisa. Muito menos escritor. Você é roqueiro?

Saco. Eu detestava essa pergunta. Só porque tinha os braços fechados de tatuagens simbólicas, o cabelo já passara do ombro e me vestia de preto as pessoas queriam saber isso? Dois mil e tantos anos de civilização cristão para tudo ser rotulado, classificado, carimbado, estereotipado? Vai para a puta que o pariu! Não respondi e virei minha vodca de uma vez outra vez.

-Você é roqueiro? Insistiu aquela camisa vermelha.

Caminhei até a porta do bar. Chequei o bolso direito traseiro da calça preta de veludo cotelê e senti o volume. Maravilha. Saquei meu mini isqueiro laranja e acionei. O baseado já estava na boca quando eu atingi a rua e atravessei para me sentar no meio fio. Dei um belo tapa e fiquei ali curtindo aquela erva adquirida no charmoso bairro do Alto Boqueirão. O garoto que me vendeu garantiu que essa vinha direto do Rio de Janeiro atravessada durante a ação do exército. Belo sabor e pelo estrago que fazia nos meus neurônios parecia que a procedência era essa mesma. Fiquei curtindo meu baseadinho até fazer a cabeça e voltei para dentro do bar. Pedi outra cerveja e fiquei bebendo por ali. O Camisa Vermelha continua ali mesmo. Ficou me olhando beber. Depois do que pareceu um longo tempo o vi tirar um gole do seu copo sem colarinho. Dirigiu-se a mim novamente.

Escreveu um livro de que? Você é roqueiro?

Nem respondi. Continuei o moto continuo da Brahma e vamos em frente. Olhei no relógio. Já eram oito e meia da noite. Se eu quisesse assistir um filminho na televisão, terminar a beata e dormir feito uma pedra para trabalhar na manhã seguinte teria de tomar rápido. Pedi a saideira. Logo me foi servida. Pedi mais vodca. Enquanto terminava minhas bebidas escutei mais quatro ou cinco vezes a mesma pergunta. “Você é roqueiro”? Agora quem pergunta aqui sou eu. Qual era a diferença para aquele cara que eu fosse ou não? Isso iria mudar a sua vida de modo radical ou o pensamento universal de forma influente e duradoura? Isso faria alguma diferença para o conselho de segurança da ONU? Isso iria acabar com a fome, a guerra, a miséria, a doença da África? Isso mudaria os cursos dos rios que deságuam no oceano? Se eu fosse roqueiro o ser humano se tornaria mais tolerante e solidário? O Vaticano deixaria de existir e o povo cairia na real que tudo não passa de exploração do homem pelo mesmo? Continuei a beber no meu ritmo até que terminei. Pedi a conta para o barman entorpecido de coca cola e café que me atendia. Para variar ele errou o cálculo sempre para mais e tive que chamar o dono do estabelecimento para acertar com ele e ouvir o seu centésimo quadragésimo nono “me desculpe” daquele ano. E ainda estávamos em agosto. Eu acho. Embolsei meu troco. Antes de sair ainda escutei um tom de quase súplica:

- Cara, você é roqueiro?

Virei para a direita e comecei a caminhar. Aquela erva maravilhosa estava fazendo seu pleno efeito misturado com tudo que eu havia bebido. Decidi que era hora de dar um tempo daquele bar e procurar algum outro. Poderia levar tempo. Cheguei ao pátio interno do meu condomínio e abri a porta do meu apartamento de fundos. Tranquei a porta e acendi a luz do meu quarto. Despi-me de tomei um agradável banho morno. Liguei a TV e estava e iria começar a reprisar o “Drácula” do Gary Oldman. Para mim estava ótimo. Eu poderia declamar as falas simultaneamente. Vesti uma cueca limpa, acendi a bagana e fiquei curtindo. O filme estava ótimo. E o Camisa Vermelha nesse momento deveria estar arrancando os cabelos porque não lhe respondi a pergunta. Será que eu sou roqueiro? Devo estar velho demais para isso...

Sorri para minha bagana e tratei de me concentrar no filme.

Curitiba, 25 de outubro de 2011, 19 graus Celsius – Primavera.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 25/10/2011
Código do texto: T3297526
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