Nesta data querida
A percepção da existência que começa a se esvair, causa nos indivíduos o temor diante da própria presença se perdendo nas frestas do tempo. Nesse momento, alguns optam por se impor de maneira incisiva, e se inserem no mundo à força, calcando nossos caminhos com seus rastros fossilizados, transformando até a sua ausência, num estar entre nós, constante.
Definiria com essas palavras a sua raiva, se pretendesse transformar em eufemismo a sua chateação ou se o sono da noite interrompida não tivesse abalado sua capacidade de raciocínio.
Cadeado fechado. Grossas correntes de ferro enlaçavam o portão em duas voltas. Sabia que a situação era absurda, mas os absurdos dos surtos de insanidade da cunhada eram o seu álibi. Homem trabalhador, responsável; já ela “não batia bem dos pinos”, e ele precisava dormir. Em casas de internação seria amarrada na cama; porém, o cunhado gentil, só lhe trancava o cadeado.
Este era o castigo que o acompanhava há vinte anos. Todos os argumentos foram insuficientes para convencer a bela esposa. Promessa feita à irmã, a mulher fazia questão de cumprir. E antes mesmo dos filhos, o casal já desembarcou da lua de mel, para o lar, doce lar, com três moradores. A cunhada, hoje com seus sessenta anos, dubitavelmente completos, possuía uma prótese no joelho esquerdo e artrose no direito.
Os flashes invadiam sua memória. Os salgadinhos comprados. E pagos. Todos assados. Recusou a suculenta bolinha de queijo. Tudo para forçar o agrado, mas sem prejudicar os níveis de colesterol da inquilina. Dois de julho, dia da festa surpresa: e a única que não estava surpresa era a aniversariante!
A notícia se espalhou na velocidade de internet banda larga. Logo os vizinhos se aglomeraram para opinar. A bancada de cimento, aquela em cima do relógio da força, poderia ter servido de apoio para o pulo. Ou talvez as barras horizontais de ferro, que entrecruzavam o portão.
Procuravam sinais de cordas, lençóis amarrados ou, quem sabe, alguma cadeira trazida da sala de jantar. Algo que esclarecesse o mistério da fuga.
A menina de pijama lilás com bolinhas brancas esfregava os olhos e ria sozinha. Imaginava sua tia de bochechas rosadas, gargalhada fanfarrona, corpanzil bem nutrido, se estatelando no chão, feito manga madura, em todas as insensatas idéias levantadas.
Só tinha uma certeza: a fugitiva não voltaria. Sentiu a tristeza ao mirar as próprias unhas recém pintadas. Só a tia deixava o esmalte vermelho pincelar suas mãos infantis. A mãe calava, com aceno de reprovação; o pai xingava. E as duas cúmplices riam em murmúrio.
Depois do acontecido, Edite, a manicure nascida em João Pessoa, não faria mais suas visitas semanais. Munida de alicate, algodão, acetona e fuxicos de toda espécie, trazia risadas para os fins de tarde. A amizade fluiu feito azeite de oliva na salada.
E a tia não gostava de ser discreta. Se enchia de cores, temperamentos e discursos de elevados decibéis, a fim de impor sua presença e inserir sua singularidade nas conversas. As duas eram igualmente geniosas. A afinidade era explosiva.
- Não existe explicação! Ela estava se tratando. Os remédios controlavam os picos de altos e baixos. Agora isso. Por que alguém some no dia do próprio aniversário?
- Pai, o aniversário da tia já foi.
- E sem dar satisfação! Doença não é desculpa para desrespeito! O senhor tem muita paciência.
- Mas até mesmo minha paciência tem limite, dona Lisandra. Isso me parece uma retaliação, caso pensado, e sem motivo!
- Pai, pode ser porque…
Os adultos gesticulavam absortos, indiferentes a qualquer argumento que ecoasse abaixo da altura dos seus ombros.
A garota aproveitou sua invisibilidade e invadiu a casa dos fundos: queria buscar os esmaltes fosforescentes. Seus pais não entendiam nada. E tantas vezes ela explicou. Fez sessenta anos no dia dois de junho. Foi a última coisa que a mãe, a avó da garota, fez questão de lembrar, antes do infarto fulminante.
Nasceu em dois de junho. O pai foi bêbado registrar a filha, já que estava sempre bêbado. Na hora, falou a data errada. Ou entenderam errado, por causa da língua enrolada e babenta pronunciando o nho. O RG vinha datado de julho, mas um pedaço de papel não valia mais do que palavra de mãe.
Por isso a tia estava emburrada. Nos vários invernos que remetem a sua memória, a sobrinha sempre se deparava com a mesma discussão no dia do parabéns. Tem hora que cansa. Só a Edite ouvia. E também, ninguém fora a tia, ouvia a Edite. A morena guardava seus trocados numa bolsinha de couro cru. E ensinava o ponto da farinha de milho, encharcada em água até fazer barulho de terra molhada, amassada entre os dedos, na hora de cozinhar o cuscuz.
Em seis meses teria a quantia para visitar a família. Dois dias de viagem. O ônibus chacoalhava nos buracos das estradas mal recapeadas, as pernas adormeciam. E ainda assim era boa por demais a sensação de se voltar para casa.
A garota ouvia com atenção as conversas das quintas-feiras, enquanto escolhia na nécessaire um tom de rosa ou vermelho. E nesta noite se recordava de tudo, enquanto remexia as gavetas vazias.
Roupas, jóias e sapatos sumiram de forma tão sutil quanto a moradora. Não acreditava na possibilidade de uma senhora pular o muro. Principalmente carregada de malas. E o cadeado intacto? Se pelo menos estivesse estraçalhado e atirado ao chão, as coisas fariam sentido.
Já estava prestes a desistir de encontrar algum pertence abandonado, quando viu no criado mudo, atrás do abajur, um vidro de esmalte.
Que sorte da menina! Justamente sua cor favorita! Levantou as sombrancelhas e abriu o sorriso de dentes encavalados. O aparelho reluzia, prateado, na luz branca.
Passada a ansiedade da surpresa, a sobrinha entendeu o recado. A tia sempre pensava em tudo, via cada detalhe, cada cutícula ou lasquinha de unha não passavam desapercebidas do seu olhar metódico. Só podia ser proposital.
Embaixo do esmalte havia um cartão preto, de letras amarelas. Com nome e telefone de um chaveiro. Tão esperta era a tia.
Colocou a lembrança dentro do short, presa no elástico da calcinha. Saiu discreta rumo a sua cama. Na manhã seguinte acordaria cedo para a aula. Junto aos primeiros raios de sol. E não saberia dizer onde a tia estaria naquela hora… Mas com certeza sabia onde chegaria em dois dias.
Definiria com essas palavras a sua raiva, se pretendesse transformar em eufemismo a sua chateação ou se o sono da noite interrompida não tivesse abalado sua capacidade de raciocínio.
Cadeado fechado. Grossas correntes de ferro enlaçavam o portão em duas voltas. Sabia que a situação era absurda, mas os absurdos dos surtos de insanidade da cunhada eram o seu álibi. Homem trabalhador, responsável; já ela “não batia bem dos pinos”, e ele precisava dormir. Em casas de internação seria amarrada na cama; porém, o cunhado gentil, só lhe trancava o cadeado.
Este era o castigo que o acompanhava há vinte anos. Todos os argumentos foram insuficientes para convencer a bela esposa. Promessa feita à irmã, a mulher fazia questão de cumprir. E antes mesmo dos filhos, o casal já desembarcou da lua de mel, para o lar, doce lar, com três moradores. A cunhada, hoje com seus sessenta anos, dubitavelmente completos, possuía uma prótese no joelho esquerdo e artrose no direito.
Os flashes invadiam sua memória. Os salgadinhos comprados. E pagos. Todos assados. Recusou a suculenta bolinha de queijo. Tudo para forçar o agrado, mas sem prejudicar os níveis de colesterol da inquilina. Dois de julho, dia da festa surpresa: e a única que não estava surpresa era a aniversariante!
A notícia se espalhou na velocidade de internet banda larga. Logo os vizinhos se aglomeraram para opinar. A bancada de cimento, aquela em cima do relógio da força, poderia ter servido de apoio para o pulo. Ou talvez as barras horizontais de ferro, que entrecruzavam o portão.
Procuravam sinais de cordas, lençóis amarrados ou, quem sabe, alguma cadeira trazida da sala de jantar. Algo que esclarecesse o mistério da fuga.
A menina de pijama lilás com bolinhas brancas esfregava os olhos e ria sozinha. Imaginava sua tia de bochechas rosadas, gargalhada fanfarrona, corpanzil bem nutrido, se estatelando no chão, feito manga madura, em todas as insensatas idéias levantadas.
Só tinha uma certeza: a fugitiva não voltaria. Sentiu a tristeza ao mirar as próprias unhas recém pintadas. Só a tia deixava o esmalte vermelho pincelar suas mãos infantis. A mãe calava, com aceno de reprovação; o pai xingava. E as duas cúmplices riam em murmúrio.
Depois do acontecido, Edite, a manicure nascida em João Pessoa, não faria mais suas visitas semanais. Munida de alicate, algodão, acetona e fuxicos de toda espécie, trazia risadas para os fins de tarde. A amizade fluiu feito azeite de oliva na salada.
E a tia não gostava de ser discreta. Se enchia de cores, temperamentos e discursos de elevados decibéis, a fim de impor sua presença e inserir sua singularidade nas conversas. As duas eram igualmente geniosas. A afinidade era explosiva.
- Não existe explicação! Ela estava se tratando. Os remédios controlavam os picos de altos e baixos. Agora isso. Por que alguém some no dia do próprio aniversário?
- Pai, o aniversário da tia já foi.
- E sem dar satisfação! Doença não é desculpa para desrespeito! O senhor tem muita paciência.
- Mas até mesmo minha paciência tem limite, dona Lisandra. Isso me parece uma retaliação, caso pensado, e sem motivo!
- Pai, pode ser porque…
Os adultos gesticulavam absortos, indiferentes a qualquer argumento que ecoasse abaixo da altura dos seus ombros.
A garota aproveitou sua invisibilidade e invadiu a casa dos fundos: queria buscar os esmaltes fosforescentes. Seus pais não entendiam nada. E tantas vezes ela explicou. Fez sessenta anos no dia dois de junho. Foi a última coisa que a mãe, a avó da garota, fez questão de lembrar, antes do infarto fulminante.
Nasceu em dois de junho. O pai foi bêbado registrar a filha, já que estava sempre bêbado. Na hora, falou a data errada. Ou entenderam errado, por causa da língua enrolada e babenta pronunciando o nho. O RG vinha datado de julho, mas um pedaço de papel não valia mais do que palavra de mãe.
Por isso a tia estava emburrada. Nos vários invernos que remetem a sua memória, a sobrinha sempre se deparava com a mesma discussão no dia do parabéns. Tem hora que cansa. Só a Edite ouvia. E também, ninguém fora a tia, ouvia a Edite. A morena guardava seus trocados numa bolsinha de couro cru. E ensinava o ponto da farinha de milho, encharcada em água até fazer barulho de terra molhada, amassada entre os dedos, na hora de cozinhar o cuscuz.
Em seis meses teria a quantia para visitar a família. Dois dias de viagem. O ônibus chacoalhava nos buracos das estradas mal recapeadas, as pernas adormeciam. E ainda assim era boa por demais a sensação de se voltar para casa.
A garota ouvia com atenção as conversas das quintas-feiras, enquanto escolhia na nécessaire um tom de rosa ou vermelho. E nesta noite se recordava de tudo, enquanto remexia as gavetas vazias.
Roupas, jóias e sapatos sumiram de forma tão sutil quanto a moradora. Não acreditava na possibilidade de uma senhora pular o muro. Principalmente carregada de malas. E o cadeado intacto? Se pelo menos estivesse estraçalhado e atirado ao chão, as coisas fariam sentido.
Já estava prestes a desistir de encontrar algum pertence abandonado, quando viu no criado mudo, atrás do abajur, um vidro de esmalte.
Que sorte da menina! Justamente sua cor favorita! Levantou as sombrancelhas e abriu o sorriso de dentes encavalados. O aparelho reluzia, prateado, na luz branca.
Passada a ansiedade da surpresa, a sobrinha entendeu o recado. A tia sempre pensava em tudo, via cada detalhe, cada cutícula ou lasquinha de unha não passavam desapercebidas do seu olhar metódico. Só podia ser proposital.
Embaixo do esmalte havia um cartão preto, de letras amarelas. Com nome e telefone de um chaveiro. Tão esperta era a tia.
Colocou a lembrança dentro do short, presa no elástico da calcinha. Saiu discreta rumo a sua cama. Na manhã seguinte acordaria cedo para a aula. Junto aos primeiros raios de sol. E não saberia dizer onde a tia estaria naquela hora… Mas com certeza sabia onde chegaria em dois dias.