Digna

Chovia. Idamy, 31 anos, solteira, levemente obesa, e com os óculos de aros finos a lhe escorregar pela face rechonchuda, caminhava a passos lentos na Avenida Paulista. Seu rosto tomado de espinhas, os sulcos nasolabiais profundos, o queixo retraído e as fartas sobrancelhas misturadas à natural falta de feminilidade das roupas largas e desajeitadas que usava, no entanto, não a tornava menos digna no meio da multidão que, apressada e estressada como de costume, se embrenhava nas esquinas e ruas e dispersava -se pela largura da calçada.

Dignidade porém era uma coisa, diferente de normalidade, diferente de aceitação que ela nunca obteve, a aceitação plena e natural da sociedade, e era isso, como uma idéia fixa, como uma doença crônica, como um demônio abissal e um espírito maldito, o pensamento-mor que rondava a mente de Idamy desde que se entendia por gente. Ali, era só mais uma no meio da multidão, no entanto, sentia-se como uma extra -terrestre.

Nao entendia a natureza de seu próprio sexo, usava sempre um cabelo preso e marcado, quebrado, bagunçado e rebelde às vezes a lhe soltar do elástico mal-preso e não compreendia como as mulheres conseguiam todas elas, todas as que conhecia e provavelmente as que viria a conhecer, andarem sempre lindas e bem arrumadas, os cabelos sempre impecáveis e sempre com malditos sapatinhos, fossem salto baixo, ou salto alto, vermelhos, azuis ou pinks. Idamy, tinha 4 pares de tênis, odiava sapatos e maquiagens, as calças jeans eram como um uniforme e isso bastava. Não sabia como cuidar dos cabelos, jamais soube. Lembrava-se o tempo inteiro de flashes do cotidiano, que maximizava em sua mente como um acontecimento de alta proporção, como por exemplo o dia em que algum desconhecido cochichara algo maldoso a seu respeito no metrô, ou o dia em que duas mulheres reclamaram maldosamente de seus cabelos mal-presos esvoaçando no rosto delas, na escada rolante. "Excluída da sociedade por ser feia", era o rótulo que dera a si mesma, mas retirava daí, no entanto, o sustento psicológico de sua pessoa: era uma pobre mulher, meiga e inocente sofrendo o preconceito e a discriminação de uma sociedade doentia e perversa. De certo modo, tinha um pouco de razão, mas isso porque esquecia-se também das poucas vezes em que fora elogiada. Para ela eram apenas fragmentos que vez ou outra, lhe penetravam a mente em um ou outro momento para que a fizesse soltar pelo menos por alguns segundos os pensamentos de péssima auto-estima, ainda que os mesmos voltassem depois com sua força habitual.

Tendo chegado ao seu destino, a livraria Cultura, observou, no virar da esquina, um homem torcendo o pescoço para as calças justinhas e saltinho alto que passavam. "Trogloditas" , pensou. O comportamento masculino lhe causava náuseas, sabia de sua natureza instintiva e indomável, observara aquela cena milhares de vezes e embora soubesse que se sentia atraída por eles, detestava com intensidade esse fato. Não porque ao passar na rua, nenhum homem olhasse seu traseiro e ela sentisse inveja das bundas alheias, não era isso que a incomodava embora soubesse de sua condição. O que despertava sua raiva era a natureza humana que entre razão e emoção mantinha ainda com certa força uma chama indelével de primitivismo que se sobrepunha às características do verdadeiro amor e não permitia aos feios serem amados.

Assim ela divagava enquanto subia as escadas da livraria. Passou a língua pelos dentes um tanto quanto tortos. Procurava as estantes sobre pedagogia, dessa vez, depois da depressão, o livro que a faria entender mais a si mesma seria qualquer um sobre bullying, o fator -chave do momento, que ela sabia ter passado de maneira tão pesada há tanto tempo, mas que em sua visão, se refletia totalmente no ser que era agora. Após o pagamento no caixa, saiu da livraria orgulhosa. Havia dado mais um passo para confortar o seu "eu" tão maltratado. Dobrou a esquina em direção à Avenida com o ar de quem ao menos tinha e sempre teria Dignidade...