2011 Motivos Para Querer Morrer [2]

Foi complicado. Sempre é complicado quando algo que já não existe mais deixa de existir. Compreende? Ainda mais quando o veredicto é por telefone, e o que resta são manchas no teto jamais vistas e a sensação de alívio ou de desolação. A minha é de uma perplexidade taciturna.

Vou te contar: conheci a minha personificação de mulher ideal, e com ela passei a viver momentos de felicidade explosiva; sim, sabe explodir de felicidade? Freqüentávamos peças de teatro, mostras de cinema, bares e, sobretudo, posteriormente, parques. Digo "sobretudo" porque neles eu/nós conseguia(mos) unir o útil ao agradável: eu estava desempregado e duro e lá podíamos usar e abusar das bolinações. Além do mais, minha pretensa sogra invariavelmente também estava nos teatros, cinemas e bares - mas não que isso fosse problema. Mas tudo começou a subir pra minha cabeça: meu derrotismo sendo turbinado pelas sucessões de entrevistas malsucedidas e convocações para empreguinhos meia-boca; as bolinas que me enlouqueciam e não davam em nada e uma mãe desconfiada das minhas nobres intenções com sua nobre filha e... Cara, acredite se quiser, mas o fim da picada foi quando os diálogos deixaram de existir e todo o nosso assunto passou a ser baixaria e gemidos ao pé do ouvido e promessas de fodelanças homéricas.

Isso encheu o saco.

"Simples", você pensa, "era só ter trepado".

Acontece que ela era menor de idade.

E virgem

E o papai era juiz.

Ou seja: encrenca triplamente qualificada.

Contudo, a pior das malsinações foi ela ter ficado tão obcecada em perder a porra do cabaço que chegou ao ponto de falsificar o RG.

Meu pouco dinheiro estava no fim e as paredes estavam cada vez mais fechadas à minha volta. Ela morava do outro lado da cidade, num bairro de classe média alta e quem sempre perdia tempo e dinheiro com ônibus era o papai aqui.

Paramos de nos ver.

Eu investia o do ônibus em cerveja e ficava trancado no quarto, olhando as paredes e pensando em loteria e suicídio. Ela sumiu. Não me atendia mais. Até que um dia me ligou e papeamos bastante por longos dois minutos. Desligamos com um "a gente se vê". Eu queria e não queria. Ela também.

Passou uma semana.

Aí hoje, sábado - na verdade já são duas da manhã do domingo -, resolvi sair um pouco. Uma belezinha que eu tinha ficado perguntou aonde eu iria, depois que prestei o serviço de utilidade pública anunciando minha saída numa rede social qualquer. Respondi que não sabia. Ela me intimou a ligar pra ela caso fosse pra Paulista - e era justamente pra lá que eu pretendia ir. Sinalizá-la sobre meu paradeiro resultaria em pegada. Eu não queria e queria. A outra vivia por lá e poderia ver. E eu gostava um cadinho dela - da outra, da primeira; da personificação de um ideal sintético.

Caralho, de um lado ter duas chances, do outro ter duas possibilidades e, no fim, o resultado ser sempre o recorrente vazio existencial, qualquer que seja a escolha feita.

Decidi não falar com ninguém. Que se fodessem todas.

Quando desembarquei na Estação Brigadeiro meu celular vibrou. Mensagem.

"Rafa! Que saudades de você... Precisamos nos ver. Beijos :)".

Subi as duas escadas rolantes lendo e relendo. Saí diante do pequeno boulevard de um prédio com fachada do Banco do Brasil. Senti a brisa morna no rosto. O celular aberto na minha mão. Uma mensagem minha e tudo poderia mudar.

Continuo andando sentido Consolação, sentindo consolação.

Um táxi pára ao meu lado. Eu ando. Risadas se sobrepõem sobre meus fones.

Então eu olho para trás. Rapidamente. Ao voltar o rosto à frente novamente, me veio um estalo, uma luz. O celular suando na minha mão. Ou vice-versa.

Foi quando o farol da Alameda Campinas fechou para os pedestres e eu parei que aconteceu: aquela voz.

Aquele cabelo. O casal na minha frente.

As pernas.

Era ela.

Ela vira, me encara e seus olhos crispam em confusão, e um beijo de língua bem molhado é dado em seu companheiro.

O farol fica verde.

Atravesso devagar. Ando devagar, vendo os pombinhos desaparecendo de vista.

Sentei no triple set do Banco Central e fiquei por lá cinco minutos pensando. A outra me mandou mensagem:

"Cadê você?? Vai me ver no Sarajevo hoje?"

"Quanto?", mandei de volta.

"Quarenta pra entrar :D".

Com essa, entrei no ônibus e do banco alto pude ver minha personificação do ideal no porta de um bar da Rua Augusta, fumando, rodeada de adolescentes querendo aparecer e parecer gente.

Uma terceira moça mandou mensagem perguntando se poderia passar em casa depois do trabalho. "Nem fodendo", respondi.

Desci do ônibus e aportei no balcão da padaria; bebi três garrafas de cerveja e pegue mais três latões pra beber em casa.

Uma vez em casa, lá pela meia-noite, o telefone tocou. Pensei ser uma ingrata que vi duas vezes na vida e declamei centenas de poemas em vão - ela era a única que me ligava em madrugadas assim, terríveis e ébrias. Atendi, feliz.

Não era ela. Era a Bovaryzinha Haze.

- E aí? - Perguntei.

- Nossa - ela exclamou - Quanto tempo! Como você tá?

- Bem... E você?

- Estou bem... Nossa! Caramba, quanto tempo! Como você está?

(Repete isso mais duas vezes)

- Você nunca mais me ligou - disse ela.

- Nem você – Volvi, tão seco quanto o sertão.

- Estou com saudades; vamos marcar de sair dia desses?

Fiquei quieto por alguns segundos.

- Raf...

- Qual é a sua, caralho? - Enfim falei.

- Como assim?

- Porra, não tem três horas que você agarrou o maluco na minha frente e agora vem com isso?

- Você tá me confundind...

- Deixa de ser filha da puta - tolhi, já perdendo a classe - Você olhou no meu olho e puxou o cara.

- Mas...

- “Mas” é o caralho! - E bati o telefone.

Putinha.

O telefone tocou de novo.

- Que é?

- Posso te explicar o que aconteceu?

- Você não precisa disso - falei - não tínhamos impeditivo nenhum...

- Mas...

- ... Eu me irritei pelo seu cinismo, não por ter te visto com o maluco lá; isso hora ou outra acabaria acontecendo mesmo.

Ela ficou quieta. Eu também.

- Sabe - ela falou - Eu gostava de você. Mesmo. Ainda gosto, na verdade. Mas, sei lá, parece que você desencanou... E esse menino era muito meu amigo e me deu uma puta força, mas acabamos ficando.

- Sei, sei...

E sabia mesmo... Existe uma subespécie de "homens" - comensais bípedes - que adoram se aproveitar da fragilidade emocional que aflige as mulheres que foram lesadas com algum fim abrupto; conheço bem essa racinha de corruptores ineptos; essa racinha odiosa de invejosos incapazes de iniciar algo sólido com alguém sólido; vivendo de sobras, sorrindo-se satisfeitos como hienas diante de uma carcaça fresca.

- Tudo bem – Soltei, subitamente cansado de tudo.

- Você tá bem?

- Sim, e você?

- Sei lá... A gente não precisa terminar, né?

- Terminar!?

- É, nosso lance... A gente ainda pode sair, beijar... Terminar o que começamos inúmeras vezes. - E soltou um "hihihihihi".

Larguei o telefone, fui até o congelador e abri uma lata. Entornei-a e mantive um pouco de cerveja dentro do meu dente aberto.

Peguei o telefone de volta.

Ela continuava lá.

Do outro lado, na Zona Sul.

Respirando.

Barulho de TV ao fundo.

Desliguei.

Foi complicado.

Sempre é.

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JANEIRO de 2011

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20 e 21/10/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 21/10/2011
Reeditado em 21/10/2011
Código do texto: T3290368
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