COISAS DE FAMÍLIA VI

Com muito cuidado, Ângela despejou o conteúdo do pequeno envelope no copo com água. Olhou no relógio, onze e meia da noite, voltou-se então para a mistura e continuou.

Nos olhos, lágrimas brotaram. No peito a angustia. Na mente, pensamentos conflitantes. Na boca, um gosto amargo.

Por um momento, balbuciou um nome: Marcos. Olhou para a estante e viu numa foto, o sorriso do marido. Devolveu o sorriso. Depois, abriu os lábios num movimento estranho enquanto lágrimas marcavam o rosto. Sorria e chorava num misto de atitude e arrependimento.

A mão direita continuava no líquido que naquele momento era marrom. Voltou o olhar para o documento sobre a mesa. A fatura do cartão de crédito. Com a mão esquerda desdobrou-o e mais uma vez viu o nome do famoso motel.

Um grito assombroso ecoou no amplo apartamento. "Por quê?"; "Por quê?" repetia em voz alta. "Por quê?" afinal são dezoito anos de casados. Dois filhos. Vida feliz. "Por quê?". Dedicara sua vida à ele. "Por quê?".

As perguntas, mantidas em silencio e portanto sem respostas, machucavam, torturavam e oprimiam a vida de Ângela, que num súbito "virou" o liquido na boca.

Neste momento, um carro pára na garagem do prédio. Marcos, o marido fala ao telefone.

- É Jorge, tentei resolver do meu jeito, mas não deu. Hoje vou ter que falar a verdade com a Ângela... É a verdade sobre o roubo... É rapaz vou ter que falar pra ela que roubaram a maleta com os papeis da empresa... E sabe o que descobri cara? O meu cartão de crédito foi junto... E eu nem bloqueei o "bicho".