Descontinuidade

Terça feira, seis e quinze da tarde. O calor sufocante e a farta luz solar me fazem pensar seriamente que ainda é hora do almoço e fluxo de pessoas acumulando-se na porta do cine Odeon me fazem pensar que é sexta ou sábado. Na Cinelândia as pessoas vão e vêm apressadas, mal se dando conta da existência umas das outras, apesar de se agruparem as centenas nos pontos de ônibus e nos restaurantes locais. Engraçado, sempre pensei que dias tristes seriam chuvosos e solitários, em preto e branco e com uma névoa translúcida que tornava tudo imaterial. Só consigo pensar em como queria estar em outro lugar.

Peço mais um chope e o bebo quase que instantaneamente. O garçom pergunta se eu quero mais alguma coisa e eu o despacho com uma breve negativa com a cabeça. Que mania desgraçada de perguntar se a gente quer alguma coisa! Se eu quiser, eu peço! Não pedi o chope? Olho para a porta do Odeon de novo, um monte de gente com cabelo colorido e vestindo roupas estranhas se aglutina, esperando a hora de ver algum filme uzbeque chatíssimo. Uma menina com uma mecha azul no cabelo olha intermitentemente pra mim desviando o olhar quando eu olho pra ela. Bonita.

Depois de uma hora de espera, finalmente ela chega. Está de óculos escuros, veste um vestido longo preto de mangas curtas e ta com o cabelo preso com um rabo de cavalo, tudo nela é tristeza e desânimo e, mais do que nunca, eu queria estar em outro lugar.

“Oi”

“Oi”

“E aí? Como tem passado?”

“O que você acha? Muito mal!”

Saco! Eu só perguntei por perguntar.

“Eu tenho chorado todo o dia, não consigo dormir nem comer direito. Só fico repassando aquele dia na minha memória”.

Ela abre a bolsa e pega um maço de cigarros, tira um e acende.

“Você não tinha parado?”

“Ora! Vá se foder!” – disse enquanto dava um longa tragada. Ficamos nos olhando por algum tempo em silêncio e o garçom chega trazendo mais um chope que eu havia pedido pouco antes dela chegar.

“Mais alguma coisa?”

“Não porra! Se eu quiser eu peço!”

Ele se afasta com cara de poucos amigos. Ela me encara tomando coragem para jogar em mim a pergunta que está entalada na garganta dela há duas semanas. Antes da pergunta sair de sua boca eu já a ouço em minha mente.

“Por quê?”

“Olha, não vamos começar com isso de novo”.

“De novo? E quando nós falamos sobre isso?”.

“Não faz isso não, não quero te magoar”.

“Ah! Muito obrigada pela preocupação” – disse terminando de fumar o cigarro enquanto acendia um outro na guimba do antigo – “Você nunca me disse o que tava errado, nunca me deu uma chance de corrigir o que incomodava!”

“Isso não é verdade, você sabe.”

“Eu te amo! Será que meu amor não vale nada pra você?”.

“Para”

“Eu dediquei a você os melhores anos de minha vida” Ela para por um minuto e começa rir, um riso nervoso, quase histérico, e, após o breve acesso, ela respira fundo e fala com uma voz esganiçada muito próxima ao desespero “Meu Deus! Eu sou um clichê ambulante!” Disse tragando uma longa baforada acabando com o segundo cigarro em menos de meia hora. Ela pega o maço mas ele está vazio, ela o amassa e joga longe na praça.

“Vai começar a jogar lixo na rua também?”

Ela se cala, dá de ombros, e chama o garçom com um gesto nervoso. Ela pede um maço de cigarros e um chope. O garçom começa a abrir a boca para perguntar se ela quer mais alguma coisa porém ele me olha e se cala, afastando-se em silêncio. Nos encaramos soturnamente e em silêncio por um longo tempo depois que o garçom volta com os pedidos dela.

“Volta pra mim!”

“Para! Não faz isso.”

“Eu te amo! Não me deixa! Eu faço o que você quiser!”

“Eu quero que você me deixe em paz! Acabou! Eu não aguento mais você me ligando de madrugada, não suporto mais ouvir minha mãe falando que você ligou pra ela no meio da noite para culpá-la, não suporto mais você vir atrás de mim no trabalho nem encontrar você dormindo na soleira de minha porta me esperando chegar.”

“NÃO AGUENTA MAIS MAS ME COME MESMO ASSIM!”

Se havia alguém naquele restaurante que, nesse momento, não virou o pescoço e olhou para nós era por quê estava sofrendo com um grave caso de torcicolo. Eu sinto meu rosto ficar quente e sinto um enjoo crescer em meu estômago, meu deus! Como eu não queria estar aqui!

“Calma, você...”

“EU O QUÊ? ESTOU IRRACIONAL? É ISSO QUE VOCÊ VAI FALAR DE NOVO?”

Aperto o braço dela e ela solta um gemido sofrido e dolorido. Uma nuvem rubra nubla meus olhos e começo a ver tudo em tons carmesins. Ela me encara com os olhos vermelhos e cheios de lágrimas.

“Fala baixo. Para de fazer escândalo, que inferno!”

“Para de apertar meu braço, tá me machucando!” - ela fala com um tom de voz que lembra o de uma menina que acabou de ver sua boneca ser roubada e algo no meu coração revira ao vê-la assim, me lembrando do quanto eu já amei aquela mulher.

“Chega, você tem que deixar isso de lado, você tem que seguir em frente”.

“Não posso! Você não entende que eu não consigo! Como eu vou seguir em frente sem você?”

Ficamos em silêncio por um longo tempo de novo. Eu meto a mão no bolso e tiro uma nota de cinquenta reais e coloco sobre a mesa. Ela olha desesperada para o dinheiro e para mim enquanto me levanto. Ela esboça um protesto mas, finalmente, ela se dá conta que é inútil e, impassível, eu a observo enquanto algo em sua alma se quebra e ela abaixa o rosto olhando pra mesa, chorando amargamente.

“Tchau” - disse laconicamente enquanto pegava minha bolsa e me levantava. Ela não fala nada e, de longe, eu a vejo continuar sentada na mesa, sozinha, incapaz de encontrar em si a força que precisa para se erguer e seguir adiante. Finalmente acabou, dez anos de casamento, dois anos de crise, seis meses de separação e duas semanas de perseguição, tudo acabado. Vou até a estação do metrô e pego a composição para a Saens Pena, solto na São Francisco Xavier e vou andando pela Conde de Bonfim, olhando para o céu nublado e pensando no que vai ser dali pra frente.

Dois anos se passam, não tenho mais notícias dela até um dia quando, passando diante de uma banca de jornais, eu vejo uma fotografia sua na capa de um desses tabloides populares. É uma foto da época em que estávamos casados, e ela está com aquele belo sorriso melancólico que me cativou quando ainda éramos jovens. Inquieto eu vejo que sua foto está ao lado de uma outra foto ilustrando um assassinato brutal, a especialidade desses jornalecos. Eu compro o jornal e crio coragem para ler o que está escrito abaixo de sua foto.

Fico alguns minutos lendo e relendo a legenda da foto sem saber o que pensar. Paro, leio a notícia dentro do jornal e volto até a fotografia na capa do jornal, cada vez mais perplexo. Eu volto a banca, procuro por algum tempo e encontro o que procuro. Um pequeno livro de autoajuda com a mesma foto de minha ex-mulher que estava no jornal na capa, logo abaixo do título, escrito com letras vermelhas e garrafais “LIÇÕES QUE APRENDI CASADA COM UM SALAFRÁRIO”. Segundo o que estava no jornal, era o maior sucesso editorial do ano.

Bem, finalmente ela seguiu em frente.

Fabio Campello
Enviado por Fabio Campello em 20/10/2011
Código do texto: T3287871
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