COISAS DE FAMÍLIA III

Lembro-me ainda do Juca. Como esquecer daquele rosto sarnento moldado numa cabeleira amarela?

Juca foi um dos personagens da minha infância. Morou por breve tempo próximo da minha casa, e era realmente uma figura diferente. Não usava bermudas, não sorria e ficava de longe só olhando nossas brincadeiras de moleque.

Um dia, me aproximei dele e perguntei se gostaria de juntar-se a nós no pique. Ele me olhou com uma cara esquisita e fez que "não" com a cabeça. Insisti e ele mais uma vez respondeu que não. Respondi com um aceno e fui ao pique. Num determinado momento, olhei e vi Juca lá parado, olhando.

A família também tinha um comportamento estranho. Os pais não falavam com ninguém. Nem um "bom dia". As irmãs mais novas do Juca, nem no portão ficavam. Eles usavam roupas compridas e em tom escuro.

Até que houve uma oportunidade. Foi num dia de chuva. Juca "vinha as carreiras" pela rua carregando duas bolsas, e de repente, caiu. Como demorou a se levantar, dei um tempo e depois

fui até ele. Ao chegar, vi e em meio ao aguaceiro, um rastro de sangue. O moleque tinha "rasgado" o joelho. Ajudei-o a levantar. Ele mostrou-se preocupado com as bolsas de mantimentos que carregava. Ajudei-o também a recolher os produtos, quando me deparei com um embrulho de jornal manchados com um liquido amarelo. Ele pôs as mãos na cabeça em sinal de desespero, foi quando vi lágrimas nos seus olhos e ouvi a frase: "Os ovos quebraram". Estranhamento notei que o machucado no joelho ficou em segundo plano. Perguntei se ele queria ir até a minha casa e mais uma vez, "ouvi" o não no mover da cabeça. Logo depois agradeceu e tentou andar. Tentou e não conseguiu. Ainda assim, tentou de novo e parou de novo. Me reaproximei e me ofereci para ajuda-lo. Ele não respondeu. Segurei a bolsa e o braço de Juca e, mesmo com dificuldades, seguimos até o portão verde da casa de Juca. O pai dele aguardava na varanda e quando viu nossa aproximação veio ao nosso encontro. Notei a expressão séria do homem e neste momento vi que Juca ficou inquieto. O pai abriu o portão e se dirigiu ao filho:

- O que falei sobre você se misturar com estes enfieis?- A frase foi seguida de um bofetão. O menino caiu.

Foi quando o olhar do pai desviou-se para as sacolas. Ao ver o embrulho de jornal com as manchas de amarelo, gritou:

- O ovo quebrou seu imprestável - Outra bordoada.

Sem saber o que fazer, "saí em disparada" de volta pra minha casa.

Tempos depois a família se mudou e nunca mais se teve noticias.

Nunca comentei o assunto. Mas hoje lembrei do Juca e a lição que vivi naquele dia e cheguei a uma conclusão: Criança não entende o universo dos adultos. Porém, quando a infância é "invadida" pelo pensamento adulto acontece uma confusão entre dois mundos e geralmente o mais fraco sente muito mais.

Não sei como o Juca está hoje, mas Deus queira que a vida tenha lhe dado oportunidades melhores.

E aqui fica minha lembrança e minha oração pelos Jucas de ontem e pelos de hoje.