O Rei dos Hunos


O dia amanheceu com promessa de contrariedades. Ema, minha esposa, serviu o café da manhã com os olhos empapuçados e vermelhos, sinal que estava me escondendo coisa muito grave. Ela nunca foi de se aporrinhar com pequenos aborrecimentos. Nada perguntei, com o correr das horas eu descobriria, afinal eu era coronel da Polícia Militar, coisa alguma me escapava naquela cidadezinha maldita. Átila, meu filho de quinze anos, pelo contrário, parecia feliz. Rapazola de raríssimos sorrisos, Átila tinha o semblante irradiando uma luz estranha e ali, à mesa, comia o desjejum pausadamente, saboreando os quitutes da mãe com deleite incomum. Também ele não daria um pio, caso soubesse o que estava se passando com Ema. Não nos dávamos bem. Há um ano tive a ideia de iniciá-lo nos prazeres da carne. Escolhi uma tarde de segunda-feira, dia de minha folga. Combinei com a cafetina Marta o fechamento momentâneo de seu prostíbulo fora do perímetro urbano e que instruísse as suas melhores garotas para tratar meu rapaz com as honras dignas do Rei dos Hunos. Mandei o garoto entrar no carro e quando estávamos na estradinha de terra batida, já nas imediações da zona, contei-lhe, pleno de regozijo, a finalidade da viagem. Ele me chamou de velho sujo. Não sou sujo e nem velho – tenho quarenta anos. Minha indignação foi tamanha que parei o veículo, joguei-o para fora e lhe dei um murro. O garoto esparramou-se no chão, a boca sangrando. Então se deu o imponderável: ele levantou-se lentamente, tirou a camisa e disse, surdamente, que na cara dele ninguém batia. Ali estava Átila, meu filho, desafiando-me. Sou baixo e a vida dedicada aos serviços burocráticos me deixou flácido, com uma barriga de cerveja quase obscena. Observei o garoto e senti um temor vergonhoso. Além de gigantesco, ele praticava halterofilismo. Dominei meu medo e topei a briga. Tendo como testemunhas o sol vespertino, o solo gretado da estradinha e a quiçaça dos campos incultos, fui massacrado. Desde então só nos dirigimos um ao outro para dizer o estritamente necessário.
Terminei de tomar o café, tirei algumas migalhas de pão caídas na farda e ia me levantar quando Ema tomou a decisão. Enfiou a mão no bolso do avental, sacou várias folhas de papel e passou-as para mim.
– Enfiaram isso por debaixo da porta. A vizinha disse que a cidade inteira foi inundada por essa imundície.
Eram folhas impressas de computador e relacionavam os nomes dos homossexuais da cidade, os assumidos e os que permaneciam no armário. Havia o nome do filho do prefeito, do farmacêutico vereador, do feirante vendedor de pastéis – constavam os nomes dos maiorais e também da arraia-miúda. E de Átila “o filho do coronel Nicodemos”.
Minhas vistas ficaram turvas, o sangue fluiu para rosto.
– Vou matar o desgraçado que está fazendo essas injúrias, berrei socando a mesa.
– Por que a zanga? É a mais pura verdade – retrucou Átila. Olhei-o, era surpreendente, mas ele sorria. Meu filho sorria! Assim de supetão lembrei-me do desconforto que me causavam as tatuagens dele: na omoplata a maçã vermelha parcialmente mordida; o beija-flor no antebraço poderoso, o botão de rosa no peito de boxeador peso-pesado. Minha memória recuou no tempo, lembrei-me de quando ele tinha treze anos e tirava o buço dos lábios usando a cera quente de depilagem da mãe, de como eu dei grandes gargalhadas e depois lhe mostrei como é que um homem de verdade se barbeava – usando a navalha de cabo de marfim que tinha sido do meu avô.
– A mais pura verdade... – murmurei, cansado. Muito cansado.
– A verdade absoluta – reafirmou meu filho. Depois meteu a ponta de uma salsicha do café da manhã na boca e chupou-a fazendo um barulho nojento. Peguei meu quepe e saí. Fiquei alguns minutos na varanda. Precisava readquirir minha dignidade – eu estava chorando. Ao que me lembre, tinha sete anos de idade quando havia chorado pela última vez.