O Retrato da Dor


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A lembrança do silêncio
Daquelas tardes, daquelas tardes
Da vergonha do espelho
Naquelas marcas, naquelas marcas
Havia algo de insano
Naqueles olhos, olhos insanos
Os olhos que passavam o dia
A me vigiar, a me vigiar...   
Camila, Camila - Carlos Stein / Sady Hömrich / Thedy Corrêa

 
    Olhou-se no espelho mais uma vez e reconheceu o olhar de dor que nunca estivera ali. Aquele olhar de mulher sofrida que nunca fora  seu, mas que o tempo se encarregara de acrescentá-lo a sua imagem. O olhar surgira porque uma raiva surda foi se acumulando, corroendo por dentro seu ânimo, sua disposição e respeito pela vida.
    Motivos para o sofrimento e a dor não lhe faltavam. Iria arrumar as malas, sua e dos meninos mais uma vez. No dia seguinte já estariam longe. Uma nova cidade, um mundo para recomeçar do zero, para recompor vidas, para fugir das agressões constantes.
    Não saberia dizer ao certo quando começara, quando o ciúme que lhe envaidecia passou a ser doença, motivo para justificar as sucessivas cenas de destempero, de ofensas e finalmente de agressão física.
    Sabia que não merecia isso, que seus dois meninos não mereciam, mas pouco pode fazer para evitar. Dessa vez não teria volta. Finalmente o juiz lhe dera separação de corpos e determinara que ele ficasse longe de si e dos seus filhos. Enquanto arrumava mais uma vez o pouco que conseguiria levar consigo, não pode evitar as lágrimas de raiva e tristeza enquanto relembrava as cenas de horror que vivera.
    Relembrar aquelas cenas lhe deixava doente. Ele aos berros, irritado por tudo e por nada, agredindo primeiro com palavras e depois safanões e empurrões passaram a ser constantes. O homem sedutor e charmoso que conhecera e casara se transformara  em um monstro!
    No começo ele se desculpava, dizia que havia perdido a cabeça, que não aconteceria mais e ela compreendia, perdoava, explicava aos meninos que papai estava nervoso, cansado... Quando os intervalos das agressões diminuíram, não sabia mais o que dizer. Apenas via o terror nos olhos das crianças, no momento que a gritaria começava, até a pancadaria, o desespero da fuga.
    A gota d’água foi ser acordada no meio da madrugada aos socos e pontapés. A gritaria acordou as crianças, que correram para socorrê-la e também foram espancadas. Ver um dos meninos sangrando fez com que pedisse ao outro que chamasse a polícia e agora, depois de meses de idas e vindas a delegacia e ao tribunal, tudo parecia que se encaminhava para um desfecho.
    Ao resolver que sairia da cidade, não pode deixar de pensar que era mais uma fuga. Fugiria mais uma vez, aterrorizada. Das lembranças ruins, do risco de encontrá-lo na rua. No lugar aonde iriam ninguém a conhecia e recomeçar a vida aos 40 anos não seria fácil, mas seus filhos mereciam uma vida sem violência, sem medo. Merecia uma vida sem o terror das ameaças, das agressões gratuitas, motivadas pela doença da alma daquele que um dia amou, lhe deu filhos, concordou em dividir sua vida.
    Fechou as malas, enxugou as lágrimas e prometeu a si mesma que nunca mais ele tocaria em seus filhos e nem em um fio do seu cabelo.
    Se a justiça dos homens não conseguisse lhes proteger, tinha fé que a justiça divina os alcançaria.Tinha fé que não seria mais o retrato da dor.