Conversa de bar

    Levanto preguiçosa e amaldiçôo o dia ensolarado, em plena segunda feira. Domingo sempre chove, mas hoje não. Resmungo que as horas passem em segundos, e então venha à noite, o fim do ano, uns feriados e, enfim…Bato com força na boca. Tempo é inimigo traiçoeiro, melhor um marasmo arrastado, crônico e constante, do que a angústia de tudo que não volta mais.
Escovo os dentes num esfregão desdenhoso, enquanto me atento com as imperfeições que vejo no espelho. Essas olheiras fundas, a base resolve. Agora as marcas acima do olho, são a herança dos anos, que me enrugam a testa, e murcham minhas esperanças. Os pontilhados da pele se multiplicam a cada dia. Conto e reconto. Podia ser só impressão. Coisa da minha cabeça exagerada. Mas não. As pintas surjem feito bolor, pipocando meu corpo dessas marcas do tempo.
Desenho os lábios de batom. Talvez ele apareça. Nem sei se ele gosta desse tom de caramelo. Pensei que gostasse de tatuagem, comentou uma vez que deixava a mulher sexy. Corri em busca de três estrelas atrás da orelha, nem doeu, tamanha ansiedade. Ele não notou, mostrei, ele retribuiu com um grunhido.
“Hum…”
Bobagens que não importam. Já passou da minha hora. A freguesia sedenta de pinga me espera. Avisei que é lanchonete e não bar. Mas também é verdade que o faturamento está no azul não por causa das porções de pururuca ou dos beirutes.
No período da noite contratei um colega para me ajudar. Logo termino o curso técnico. Nutrição. Nem sei pra que, os pedidos já são todos bem servidos em garrafas lacradas. São doses e mais doses no almoço, no jantar e na busca de um fôlego para viver.
Faz tempo que ele não aparece. O corte no meu dedo já se fez apenas um risco escuro. Está cicatrizando, enquanto dilacera minha raiva. Tanto nada aconteceu desde aquela tarde em que passei a faca afiada bem no indicador, enquanto fatiava cebola. Ardeu agudo, ele espremeu os olhos, me deu vontade de rir.
Suportaria qualquer dor para sentir de novo aquela aflição, ver os olhos angustiados, obrigar um cuidado. Esse quase nojo é, ao menos, algum sentimento.
Na lanchonete os olhares são de fome. Tateio a saia e puxo para baixo, esgarçando o tecido para cobrir uns centímetros a mais de pele e pêlos.
Formiga minha língua a vontade de resposta, aguardo o sinal pra despejar a saliva amarga que entala na garganta. Sou a dona. Não tenho patrão. Estudo. Mereço respeito. Incomodados? Me incomodam.
Silêncio absoluto. Pior é isso. Essa tensão sem argumentos. Não posso reagir. Vão dizer que sou louca. Finjo que não noto. Quando me enche, invado a cozinha e salpico os salgados, com cuspe.
Falta uma semana. O suficiente para fazer tudo bem planejado. Precisa ser cedo. Logo nos primeiros flashes de sol o telefone vai tocar. Vou ter que ouvir. E agradecer. E responder que sim, obrigada, tudo vai dar certo, vou encontrar alguém. Fazer uma piada sobre meu futuro como tia. Parecer descontraída. Saudade da época em que o assunto girava entre emprego, salário, roupa, corte de cabelo e obviedades do clima.
Tenho que estar linda. E magra. Fico uns dois dias só nos líquidos. A barriga desincha. O problema é que a lanchonete tem uns doces deliciosos. Torta crocante de morango. Trufa de leite condensado. Não consigo seguir a dieta. Quando ninguém me olha atravessado, já ligo o radar, e já sei de tudo. Esse desejo repugnante, dos fregueses, também é, ao menos, algum sentimento.
No momento de desespero o estômago embrulha, se revira e é melhor eliminar o mal de vez. Voltar a ficar bem.
Ele chegou tão discreto. Conversamos palavras corriqueiras. Depois se lembrou do meu nome. Falava calmo, quase gemendo. Trazia, todo dia, uma nova fotografia. O fundo sombrio e sóbrio, os olhares vagos, comuns, imperceptíveis. Só ele conseguia enxergar.
Eu ouvia as histórias com os braços e os sonhos distendidos, na sua direção.
Ele entendia todas as minhas aflições. Suas palavras eram a tradução de tudo que eu queria e não conseguia pensar. O homem ideal para o domingo à tarde.
Pensando bem, preciso parecer destroçada. Péssima. Minha lembrança vai ficar colada nos seus neurônios feito pesadelo. A culpa é dele. Minha feição vai estar disforme. Quem sabe ele não chega a tempo de ouvir meus gemidos de horror.
Deixei claro o peso da sua presença na minha vida frágil. Enchi seu ego com meus devaneios e o lambuzei de devoção total.
O cheiro do óleo torrando os filés de tilápia me traz a tona sua imagem. Vegetariano. A visão da minha carne sangrante e rígida vai prostrar de vez sua tranquilidade.
Todo ano minha mãe faz um bolo. Ouvi falar que neste será prestígio. Não gosto de coco. Ninguém perguntou. As tias vêm visitar. Vão trazer perfumes. Vou empilhar no armário. Cheiro me enjoa. Só o de fritura que não.
Em sete dias será um dia só meu, só feliz, só inesquecível.
No começo meu ânimo oscilava entre excitação e angústia. Mas a convivência cansa, inclusive o próprio medo. Vou esperar o trem, bem discreta. Finjo ser um passageiro comum seguindo para o trabalho. Então, num deslize, surpreendo o mundo; e saio desta vida indiferente, para violentar a indiferença de quem me cerca.
Sento no caixa e separo os montes em notas de dois, cinco e dez reais. Sorrio, por deslize, para um senhor semi desdentado. Ele retribui o agrado. Alegria demais é feito água, às vezes escorre pelos cantos, mesmo com a boca fechada.
O senhor puxa assunto. Respondo palavras curtas e insonsas. Detesto conversa de bar. O álcool torna a língua inchada e babenta. A voz soa mais ligeira do que a coordenação motora. Só com ele o assunto me animava. Um nome palpita meu coração. Comentava exatamente dele. Estava bem. Agora sim. Sem angústias. Tudo tão resolvido que nem queria mais beber.
Aquela certeza clareou minhas idéias, feito chama, doendo forte na boca do meu estômago. Se ele está bem, ele não vem. E se eu sumir, talvez até sinto uma saudade débil, mas que logo se desfaz num alívio.
O calor dessa nova descoberta alimentou toda a minha semana. Eles devem ter se entendido. Os lábios que beijavam seus copos de vidro agora se embriagam da saliva da mulher.
No dia marcado levantei corada, agradeci os votos. Guardei o papel metodicamente dobrado, no bolso. Desci do ônibus. Conferi o local e o movimento da rua. Encostei no poste, na posição em que melhor seria vista. Sabia o que fazer, e o que faria. Dia após dia.
Ele vai me ver, sempre, ela também, até que o excesso da minha presença borre toda essa alegria. Eu não sou mais imperceptível, sou agora uma nuvem cinzenta cobrindo seu céu, eufórica e mais viva do que nunca, nessa minha nova missão de eliminar sua mania de ficar bem.



Lenita Minella
Enviado por Lenita Minella em 13/10/2011
Reeditado em 14/10/2011
Código do texto: T3274851
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