O Som do Nosso Silêncio…- Versão expandida e revista...-

Crónica de tempos futuros

Auclair

O futuro?

Não quero lá chegar simplesmente porque já vivemos no futuro...

Alguém disse um dia que o eco da nossa voz por vezes é mais importante do que mil vozes distantes…alguém disse um dia que só quando se aprende a estar sozinho nos apercebemos da total dimensão humana…alguém disse um dia que a interioridade é mais importante do que a publicidade constante do que somos, porque ao falarmos em demasia não temos tempo para nós, nunca chegaremos realmente a sabermos quem somos…

Mas pouca gente ligou a estas frases feitas que no entanto revelavam uma parte fundamental da condição humana…

Vivíamos ligados uns aos outros de forma umbilical, não porque precisássemos de tal, mas porque nos convenceram que realmente precisávamos, e foi assim que aceitámos algo que não nos era fundamental que com o tempo se tornou fundamental, desfazendo os laços naturais de socialização, adquirindo laços de socialização à distância, mesmo com desconhecidos, e com o tempo os desconhecidos passaram a serem os conhecidos e os conhecidos desconhecidos…

Numa grande rede virtual sempre ligada e constantemente actualizada, fomos para lá da socialização, estabelecemos laços afectivos e profissionais bem mais profundos, bem mais sérios, ao ponto de diluirmos a nossa autonomia, a nossa individualidade, passando a ser um enorme organismo e não sabendo a nenhum nível funcionar sozinhos…E se ganhámos a dimensão do universal, perdemos a dimensão da proximidade, que se manifestava em coisas tão aparentemente pequenas como fundamentais, como olhar olhos nos olhos e não através de um ecrã, como o toque constante de pele e não somente quando necessário, o cheiro natural das coisas e não aquele químico a que um dia chamaram 4D e que supostamente deveria tornar o virtual uma cópia do real e mesmo mais tarde deveria tomar o lugar do real…

Perdemos tudo isto, mas como achámos tal o estado natural das coisas, algo propiro da evolução humana, não nos demos ao trabalho de nos preocuparmos…

A omnipresença infalível da grande rede fez-nos acreditar que esse estado seria eterno, e por isso aceitámos o estado sem o questionar, não pensando que um dia tudo poderia falhar…

E foi então que chegou um dia que todos julgámos impossível, chegou o dia em que o mundo se calou…

Mas não o mundo no sentido clássico e tradicional a que estamos habituados, falo do mundo de todos os tempos, aqui eu falo do mundo do nosso tempo, “apenas e tão somente isso…”

Para ser mais claro e preciso, falo do mundo a que nos habituámos desde os últimos séculos, o mundo da energia gerada e criada pelos homens, o mundo da tecnologia em tempos recentes, ou em tempos menos distantes…o mundo da grande rede…

Uma frase feita que pouco deve à originalidade, uma frase tornada antiga e um pouco anacrónica pela velocidade deste tempo tecnológico e que se tornou célebre por ser contra a corrente da tecnologia em excesso que parecia tola devido à sua ingenuidade idealista passou a fazer todo, demasiado sentido…Uma frase que nos parecia mais uma manifestação algo pueril de uma liberdade criativa utópica que adquiriu pois o sentido actual do estado de situação em que mergulhámos…e de repente ela tornou-se insustentavelmente real…

“Desliga o cabo, sai da rede, liga-te à vida…”

Isto traduzido de uma língua que se perdera, porque no caminho tecnológico de uniformização que a certa altura decidimos trilhar uniformizaram-se culturas, simplificaram-se estas, e as idiossincrasias como línguas de poucos milhões deixaram de fazerem sentido e só as línguas de muitos milhões passaram a serem faladas para o bem da acessibilidade da grande rede, porque a tradução implicava a perda de um tempo demasiado precisos para se desperdiçar…

E assim foi feita uma enorme tradução global para as línguas aceites, e as esquecidas ficaram com os registos entretanto tornados antigos e anacrónicos, registos perdidos em arquivos também eles esquecidos…

Mas esta frase ficou algo eterna ma mente dos elementos contra a cultura vigente que existem e existirão sempre em toda e qualquer sociedade humana…

Uma frase mítica porque se revoltava contra o paradigma incontestado de termos que estarmos sempre ligados, da nossa vida ter quer ser pública, mesmo as coisas mais intimas, estarmos sempre em partilha forçada, em comunicação mesmo que não nos apetecesse, porque mesmo os silêncios deveriam ser partilhados com alguém nem que fosse a nossa imagem em retiro, imagem que mostraria ao mundo que não nos apetecia falar, imagem sempre actualizada porque quando nos apetecesse comunicar de repente haveria alguém, nem que fosse um estranho, que se disponibilizaria a falar connosco…outro paradoxo…mesmo os silêncios, mesmo a reclusão deveria ser obrigatoriamente partilhada…

E a socialização tornou-se, sem darmos por isso, global e asfixiante, uma “super-socialização” levada ao extremo de mesmo quando socializávamos cara a cara estarmos ao mesmo tempo a socializar na rede, e assim a socialização de pessoa para pessoa passou a ser de três ou mais e jamais de duas pessoas…ao extremo que fazia lembrar o acto monarca medieval até anunciar a intimidade física quando esta ocorria…e assim para mostrarmos a normalidade, mesmo amor passou a ser partilhado…não apenas o fruto do amor, mas o amor em si…

E assim perdemos a nossa individualidade, a nossa privacidade ou não dando por isso ou simplesmente não nos importando com isso, porque a socialização do tempo dos nossos bisavôs passou a ser uma coisa do passado, perfeitamente datada e ultrapassada…o sistema de rede era omnipresente, a todos os níveis…

Mas por uma dessas ironias trágicas em que a vida e a história são raras, foi esse sistémico sobre o qual alicerçámos a nossa força que nos condenou…

Tudo aconteceu por ondas…que devido à sua ligação se propagaram e se tornaram em algo global…: uma pequena falha num centro de ligação local transmitiu-se pela rede à velocidade da luz, e assim em menos tempo do que se pode sequer pensar a pequena falha tornou-se numa falha global, e de repente a rede calou-se…a enorme e omnipresente rede morrera…

Como funcionávamos em rede nunca resolvíamos as nossas questões, os nossos problemas, as nossas dificuldades sozinhos ou sozinhas…e de repente um pequeno problema que poderia ser resolvido por meia dúzia de pessoas passou a ser um enorme problema porque essas pessoas não podiam comunicar umas com as outras…estavam impossibilitadas de tal porque a grande rede se calara…E assim um mero e temporário problema passou a ser um problema sem solução possível…

E de repente tínhamos luz, água e sistemas de manter a vida operacionais, mas os locais…pois a rede e tudo o que a ela estivesse ligado entrou em colapso…

Fechados nas nossas casas, nos nossos empregos, tendo apenas algumas pessoas à nossa frente, sentimo-nos perdidos, mudos, vazios, e por isso fomos para as ruas à procura de gente…de muita gente…mas apesar de as ruas estarem repletas de gente, essa gente era quase nada perante as multidões que encontraríamos na rede agora morta…

E as ruas encheram-se pois de gente muda, gente que insistia em comunicar pelos aparelhos da rede mas que não obtinha resposta…

Ao fim de alguns dias de enorme silencio, as pessoas por fim lá se convenceram, lá interiorizaram que a rede se extinguira, que o global dera lugar ao local, e foi então que se viraram para o local e reaprenderam a comunicar como no tempo que olhavam como anacrónico…

Foi então que aprendemos a olhar para uma pessoa e apenas para uma olhos nos olhos, foi então que aprendemos a falar da mesma forma, foi então que aprendemos a sorrir fisicamente e não apenas a fazer um símbolo num ecrã que significasse uma expressão de felicidade em alguém que a sentia mas que não a revelava…Foi então que reaprendemos a necessidade instintiva do toque, que reaprendemos a intimidade do amor feito a dois sem o termos de partilhar ou muito menos comunicar no acto ou de imediato após o acto…foi o tempo em que aprendemos a dar importância à nossa voz, à voz dos que estavam perto e não à voz distante dos outros distantes que nada mais era do que um vago eco do que deveria ser a socialização humana…

Foi então que deixámos a nossa celebrada condição cibernética e que nos tornámos humanos à moda antiga…

Deixámos pois de ser o que os outros desejavam que fossemos e passámos a sermos nós próprios…

A morte da rede não significou a morte da tecnologia por completo, significou apenas e tão somente que deixámos de darmos mais importância a estranhos do que aqueles que nos eram próximos fisicamente…

Porque ia demorar anos até que a rede voltasse, anos…uma eternidade para quem mede o tempo em segundos…

Foi assim que ganhámos a nossa humanidade, mas que preenchemos os nossos sonhos com o dia em que a rede voltaria, foi assim que sonhávamos com o fim do

Som do Nosso Silêncio…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 13/10/2011
Reeditado em 13/10/2011
Código do texto: T3273730
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