Memórias do funeral

Cá estou eu! Em um buraco de metro e meio por três que insistiram cavar num ponto estratégico do mundo para abrigar meu corpo quando este já não se completa com meu espírito. Apesar do desconforto em estar deitado e de gravata e sentir a terra gélida esfriar as paredes desta caixa de madeira em que me encontro, sinto-me mais útil à humanidade na morte, servindo ao menos de alimento aos vermes e de adubo aos vegetais, que fui houveste sido em vida, passagem esta da minha existência da qual não me orgulho muito.

Não me orgulho, mas a relatarei, enquanto os piedosos olhares insistem em de mim se despedir. Que posso mais fazer eu se a vida, esta ingrata, mandou a conta dos tempos de mocidade em que tapear no peso do salame não era crime e as natas eram mais densas? Se morto estou, nada melhor para os temperamentos nostálgicos como o meu, relatar aqui como cheguei até ela. Legar algo mais que meros feixes de lembranças àqueles que conviveram comigo seria reduzir-me a um mero produto, substituível. Como não deixei vultosas riquezas e nem grandes feitos à humanidade, encho estas páginas de letras na ânsia de poder ser reconhecido como humano, algo que em pouco momentos fui.

Eu, Euclides Ponciado de Azeredo, nasci de parto natural. E olha que foi uma das maiores pelejas que presenciei. De um lado estava eu, relutando em permanecer no ventre de minha mãe; do outro, somente toda humanidade esperando para compartilhar comigo sua mísera condição. Foram mais de sete horas de resistência, até que tive de ceder, sendo duplamente derrotado, pois também nesta ocasião já nasci órfão, de pai bandido que engravidou e fugiu e de uma mãe que acabara de falecer.

É certo, caro leitor, que confuso estou. Não sei se faço o relato de minha vida que agora é morte do início para o fim ou se ao contrário. Poderia muito bem eu reduzir essa minha existência a um ‘cresci, amei e reproduzi’, mas isto certamente lhe seria penoso, pois o privaria da melhor parte de meus dias. Fui criado por um tio que me deu o estudo necessário para um bom emprego, me graduando em Biologia na turma de 1958. Entretanto, os maiores ensinamentos necessários à vida, eu tive fora das salas de aula, caçando perdizes, pescando na barranca de rios, me entusiasmando com mulheres e fazendo política com os amigos, cousa esta que melhor conhecendo resolvi deixar de lado.

Até que um dia, depois de formado, e apesar de outros amores, me casei com a irmã de um amigo meu, que tão logo viraste meu cunhado deixara de ser amigo. Passados dois anos do enlace, Jerônima pegou cria. Foi então que resolvi conciliar a espera da morte com meu emprego de professor universitário, já que tinha cumprido com a máxima da função biológica das espécies, a reprodução.

E assim foi até que no dia de ontem acordei com uma puta dor intestinal, com o perdão da palavra em respeito às leitoras. Há um ano vinha sendo tratado pelo doutor Cabrino, que acompanhava a doença que dilatava as paredes do meu intestino delgado em virtude da grande quantidade de queratina que ingeri ao longo de 64 anos. É que tinha eu a maldita mania de roer unhas, ora pela ociosidade que a vida me proporcionava, ora pela mania de manter-me ocupado. Mas a verdade é que concluo, agora morto, que fui um assassino, de mim mesmo. Minha impaciência para com as situações e as pessoas e a angústia vivida em ocasiões é que me faziam roer compulsivamente as unhas.

Naquela manhã, doutor Cabrino nem teve tempo de ser chamado. Cabe aqui, caro leitor e leitora, uma importante observação. Doutor Cabrino talvez tenha sido o primeiro a sentir as dores de minha morte, e isso justifique seu choro no velório, este em razão mais de nossa relação de clientelismo que de amizade. Quão trágico deve ser para um médico perder seu paciente-cliente, já que a lógica medicinal-capitalista rege em um de seus artigos que o médico deve manter seu cliente vivo, mas não totalmente salubre. Caso o paciente se cure, não mais precisará de médico, e se morrer, também não. Eu estava nesta segunda condição, mas livre das artimanhas do doutor Cabrino.

Morri pela manhã e acordei no fim da tarde, morto, ainda. Mas agora deitado numa dessas horríveis caixas de madeira que a ornamentação só fazia diminuir minha simpatia e que os espíritos com mau gosto para escolhas apelidaram de urna funerária, na sala de casa, com arrumações e pompas dignas de um baile imperial. Tudo isso para celebrar minha morte. À esta hora deveria estar eu na cadeira de balanço na varanda de casa, lendo e filosofando com meus gatos, mas não, estava morto e conformado. Ora, a quem quero enganar, conformado bosta nenhuma, estava ainda angustiado e nem poderia roer as unhas. Desde pequeno fui catequizado que mortos vão ou ao céu, lugar que deve ser um tédio, ou ao inferno, que se não tivesse a má fama que tem até toparia passar as férias. Mas me angustiava a possibilidade de ao menos dar as caras no purgatório antes, já que minhas virtudes se equilibram com meus vícios.

Paralelamente à minha morte, ocorriam na sala de casa assuntos de comadre, tragadas de cigarro marca-diabo, e até uma discussão entre o padre Daví, meu confessor, e o meu genro, um pastor protestante. Como bom cadáver que sou, resolvi seguir a regra quase natural que, em se tratando de apócrifos, fumo e fofoca, morto não opina. E por falar em minha filha Carmela, esta era umas das principais carpideiras do velório. Chamo-a assim, pois as lágrimas que caíam não eram de dor pela perda do pai, mas de felicidade pela pouca herança que deixaria. Pobre coitada! Feita do mesmo barro comum que todos os outros humanos, se soubesse que meu legado patrimonial mal cobria as dívidas que deixei na vida e ela, portanto, não aproveitaria um tostão, faria verídicas as lágrimas que chora.

Talvez por já ter me preparado para o dia que encontraria a morte não foi difícil acostumar-me a vida de morto. Aliás, arrisco supor que o melhor dia de nossa vida é aquele que falecemos. Isso sem contar que somos a atração principal de um pomposo evento no qual nem sequer fomos convidados. E que evento! Flores capazes de atrair um enxame de abelhas, velas que poderiam causar um incêndio de proporções devastadoras; isso sem falar nas lágrimas derramadas coletivamente em um ato contínuo que fará as futuras gerações desta espécie se envergonharem desses lamentos artificiais.

Enquanto eu, aqui, limitado a este caixote de madeira, refletia sobre os prazeres da morte, o velório transcorria normalmente. Se bem que ele, por si só, não é algo normal. Mas enfim, a notícia da minha ida se espalhara de tal forma a não caber mais gente na sala e outros cômodos terem que abrigar os mais variados tipos desta espécie. Cabe aqui um parêntesis filosófico-capilar. Impossível não reparar um dos poucos que não se comovia com minha ida, talvez o mais sincero. Era Dodô, o barbeiro. Com ele, ao longo de mais de 30 anos aparei a barba semanalmente e o cabelo a cada quinze dias. Era meu confidente, mas a investidura de tal cargo me custou caro, pois nestas três décadas foram gastos mais de 26 mil reais, alguns cruzados e 235 navalhas. Assim, conciliava a necessidade de amigos com o dispensável ato de agradar aos meus pares estando devidamente apresentável.

Como devo satisfação somente ao leitor que percorre os olhos nestas palavras memoriais, acho bom fazer uma advertência para quando estiver vós em meu lugar. Só duas coisas me deixavam desgostoso com essa situação fúnebre. A primeira é aquela maldita lei que age inconscientemente nos frequentadores de velórios e que proíbe qualquer piada dentro de um raio de cinco metros do corpo velado. Logo eu que em velórios alheios era campeão de anedotas, mal podia ouvir as do meu. A segunda é uma constatação já feita por meus predecessores, mas que as funerárias ainda teimam em contrariar. Por estar morto e, consequentemente imobilizado, torna-se impossível espantar as moscas e outros insetos que cadáveres atraem.

Foi num destes momentos, em que pela força da mente tratava eu de espantar uma varejeira que pousara em minha mão, esta imóvel pela mortiçe e atada pelo rosário, que resplandeceu sob meu estado cadavérico o mais belo par de olhos que já habitou este circunspecto mundo. O mesmo par que em épocas passadas ora era motivo de tormenta, ora de bonança. É neste momento, caro leitor, que chegamos a melhor parte da vida deste que vos escreve. Mas em virtude do caráter que adquiri, não chamarei o intervalo comercial logo agora, na melhor parte, logo agora que há poucos metros de mim estava a materialidade do que já fora meu idealismo estético; portanto serei objetivo, tanto que, perdoeem-me se for por demais breve. É que Marina, a senhora dona deste par de pérolas de retina, poderia estar agora ocupando o cargo de viúva. Esta, ao menos, vinha sendo minha vontade desde a juventude, mas que procurava não demonstrar, mais por força das circunstâncias que por insistência do espírito. Ao invés do casamento, tivemos um mero caso concuspicioso que iniciou na faculdade, eu de Biologia, ela de Direito, e pelo visto será post-mortem.

Enquanto o olhar piedoso e nostálgico me era lançado, eu não podia esboçar qualquer tipo de manifestação. Estava reduzido à passividade; tanto que nem mesmo podia evitar que meu corpo fosse objeto de desejo de vermes que se deliciariam com ele posteriormente, apesar de minha aparente anemia.

Não foste este olhar de algo que parecia ser um arrependimento misturado com agradecimento, não dedicaria parte destas memórias a analisar este raro espécime de retinas verde-mar, que me fez menos evolucionista e mais crente em divindades. Claro, leitor; achas de certo que tamanha beleza possa ter evoluído de um primata? Obviamente não: Marina é obra dos deuses, que não tendo coisa melhor pra fazer resolveram contemplar nós, meros humanos, com a criação da qual mais devem se orgulhar. Era ela a exceção da regra de Darwin.

Vale lembrar que nos conhecemos como a maioria dos casais, num desses encontros da faculdade. À época, modéstia à parte, era eu um partido aproveitável, tanto pela riqueza que meu tio deixara ao falecer, quanto pela casca que vestia. Além do mais, poderia muito bem ter cátedra na Sorbonne em galanteio, mas Marina era tão singular que, diante dela, tinha de conter o frio na parte abdominal, disfarçar quando me olhara e me acovardar em deixá-la só. Não me conformando, pratiquei uma espécie de terapia psicológica recorrendo aos ensinamentos machadianos: “as melhores mulheres pertencem aos homens mais atrevidos”. Inspirei-me no bruxo do Cosme Velho e o restante os leitores já devem imaginar. À parte isto, ao contrário de belas histórias de amor, daquelas com um ‘felizes para sempre’, tivemos uma espécie de relacionamento não oficial, destes sem apresentações a família e reclames de sogro. É eterno, apesar de sazonal. Numa noite, confissões e promessas de alcova entre meio a beijos e abraços; noutra manhã, olhares despretensiosos de pessoas de meia idade que se cruzam na rua e fingem mal se conhecerem.

E assim foi até o dia de minha morte. De idas e vindas e de agora, enquanto descerram o caixão, de minha eterna ida ao além, sem Marina. Se por um lado meu corpo já não mais habitará este mundo miserável, por outro as lembranças do espírito que nele residia legará gerações. Retiro-me da vida a procura dos advogados que me defenderão no purgatório, com a consciência transparente em poder legar estas memórias e ciente de que pouco importa se daqui em diante tomarei o caminho do céu ou do inferno, lugares que se conhece em vida e não na morte.

Leandro Czerniaski
Enviado por Leandro Czerniaski em 06/10/2011
Reeditado em 06/10/2011
Código do texto: T3261232