Póstumo

Parada na porta da capela, ela observava aqueles que se aglomeravam ao redor do caixão onde jazia inerte aquele que, durante anos, ocupara espaço em sua vida. Estranhava como tudo se processava ali. Dois oficiais de polícia permaneciam, um de cada lado da porta, e, como estátuas, pareciam ornamentar o recinto. Os irmãos do morto conversavam alterados em um canto, distanciados dos demais. Um deles, o mais velho, parecia já ter bebido o defunto desde a véspera; o outro, mais sensato, alterava a voz, oscilando entre raiva e nervosismo. Sentadas em um banco, abraçadas, lamentavam mãe e avó; enquanto a viúva, não ela, a titular, parecia questionar algo ao morto à cabeceira do leito.

Ninguém parecia notar sua presença, mas isso não a incomodava. Ela nem ao certo sabia se queria estar ali, entretanto estava. Talvez fosse preciso confirmar a partida daquele que já havia partido de sua vida; talvez fosse o momento para uma despedida formal que, até então, não acontecera; ou tudo não passava de um instinto arredio e feminino qualquer gritando dentro dela. Ele estava morto, e isto era fato. Curiosamente, ela não chorava, não sentia nada; deixou que as lágrimas fossem exclusivas da viúva, assim como o estardalhaço pela perda acontecida.

O cheiro das coroas de flores que disputavam ambiente com aquelas pessoas começava a crescer e, como uma atmosfera nefasta, a levava à outros tempos; tempos que não tinham espaço em seu tempo. Pensou nos anos que passara com ele e nas promessas feitas e nunca cumpridas. A cada ano uma desculpa diferente… A promoção no trabalho, a doença da filha, a quitação da casa; tudo sempre servira como motivo para adiar a separação, fazendo com que ele mantivesse a vida dupla e com que ela, na condição de amante, esperasse por mais um ano. Muitos anos se foram. Até que, enfim, ela não sabia mais pelo que deveria esperar.

O toque dos sinos, anunciando que chegara o momento do sepultamento, a trouxe de volta de seus devaneios. O caixão seria fechado, porém, não antes de mais um acesso descompassado de histeria da viúva. No cortejo, rumo à sepultura, um grupo de beatas entoando a Ave Maria; ao lado do caixão a viúva fuzilada pelos olhares ácidos dos familiares do morto e, mais adiante, os policiais. Ela seguiu atrás daquelas pessoas, fechando o cortejo fúnebre embalada pela ladainha das beatas e pelo choro compulsivo da avó, que o criara desde menino.

Já próxima à sepultura, uma última recordação: lembrara do dia em que ele se fora. Parecia ouvi-lo dizer que a estava abandonando por receio de uma descoberta; ele alegava temer perder a esposa caso ela descobrisse aquele relacionamento extraconjugal, temia sua reação por acreditar que ela o amava demais. Automaticamente, depois dessa recordação, ela lembrou-se da forma como recebeu a notícia de sua morte através de uma manchete em letras garrafais na primeira página, lida ao abrir o jornal naquela manhã: “MARIDO ASSASSINADO PELO AMANTE DA MULHER.”

O caixão descia à sepultura. Guiada pela ironia da situação, ela dirigiu o olhar à viúva até então cabisbaixa. Movida por algum pressentimento, esta levantou a face e seus olhares se cruzaram. Fitaram-se durantes alguns segundos que pareceram eternos. Foi então que ela sentiu a culpa por ter sido a outra, que carregara até então, saindo como uma energia leve e etérea, e ganhando um outro território. Com olhar sarcástico, sem pena, sorriu para a viúva.

Deus às costas àquele evento deixando pra trás não somente o barulho da terra batendo na tampa do caixão, mas também o peso de quem pagou com sofrimento uma dívida que não era somente sua.

Barbara Nonato
Enviado por Barbara Nonato em 04/10/2011
Código do texto: T3258075
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.