Um Destino... Três Ps.

Na vida, desde pequena, as coisas nunca foram fáceis pra ela. Aos dois anos de idade o pai morreu de cirrose; passou a ser criada somente pela mãe, tendo também a companhia da avó constantemente acamada. Não que isso fizesse diferença: o pai não lhe dava a mínima, mas era bom ter uma figura masculina em casa, mesmo que agindo de forma ilusória. Como que pra compensar, a mãe não deixou que faltassem figuras masculinas naquela casa: um namorado diferente quase que a cada semana… Cresceu em meio a estranhos numa vida estranha de gritos e gemidos soturnos pelas madrugadas que ela, sem conseguir dormir de frio e fome, precisava encarar.

Aos cinco, num surto epidêmico, contraiu meningite. Esquecida em um leito simples de hospital público, sem visitas e sem milagres, ficou entre a vida e a morte. Escolheu a vida e viveu mais uma vez. Da doença, uma leve surdez como seqüela, pra não deixá-la esquecer as auguras do sofrimento e o cheiro fétido daquela enfermaria maldita.

Não foi pra escola, não estudou. Mal e porcamente escrevia seu nome pra poder rabiscar as contas no caderninho da mercearia quando a mãe a mandava comprar cerveja e cigarros no fiado.

Aos onze, perdeu a inocência nas mãos sujas de um punheteiro vadio que vagava noite e dia pelos becos do bairro. Ninguém viu, ninguém percebeu; mas ela sentiu. Como se tudo já estivesse perdido, aos doze, começou a ajudar em casa: se vendia pra poder comprar, se entregava a quem lhe desse alguns trocados pra poder comer.

Aos treze, foi apresentada à maconha; aos quatorze, já fumava crack, precisando cair ainda mais na vida pra poder, além de comer, manter o vício. A avó morreu quando ela tinha quinze. Nesse mesmo ano perdeu também a mãe, que foi embora ganhar chão em outro canto com um caminhoneiro. Com a partida da mãe fez da casa puteiro, levando pra lá os caras que apareciam pelas noites. Foi bom; assim não precisava mais pagar quartos pra trepar e a clientela acabou aumentando.

Aos dezesseis estava no auge do vício, da magreza e da decadência. Na concepção dos vizinhos, ter alcançado tal idade naquela vida desgraçada era uma proeza; na sua concepção, merecia comemoração. Ela comemorou. Encheu os cornos de tudo o que tinha direito naquela noite. Bebeu e fumou até cair. E caiu. Caiu no meio na rua, às cinco da manhã quando voltava pra casa. Levou uma porrada de um carro. Perdeu dois dentes e mais algumas semanas em um hospital, se recuperando de uma fratura exposta na perna e rompimento dos ligamentos de um dos braços. Após alta, recebeu uma indenização do motorista que a atropelou.

Sem saber se havia algum dia sido alguma coisa, nunca mais foi a mesma. Parou de sorrir, mancava da perna esquerda e sofreu uma atrofia no braço. Decaiu ainda mais. Aleijada e desdentada, virou mulher que ninguém queria. Sem clientela que prestasse ou que rendesse, entregava-se aos velhos bêbados pra um boquete por mixaria; ou aos mais novos que, de tão jovens, não tinham a quem comer. Já não sabia mais o que fazer… Destino cruel o seu. Com a revolta que sentia e parte da indenização que recebeu, tatuou nas costas a imagem de uma cruz cravada em solo árido. Nas pontas altas dessa cruz estampou os três Ps com os quais Deus marcou seu destino: pobre, preta e puta. E dali pra frente viveu a vida que lhe restava, tornando-se o resto da vida que vivera.

Barbara Nonato
Enviado por Barbara Nonato em 04/10/2011
Código do texto: T3258072
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