Infectante
Tem sentimento que brota acanhado, alternando entre ser e não ser; se faz intenso e nulo na velocidade fugaz de um respiro. Alimentado pelo tempo, vira corpo robusto, se nutrindo do hormônio gotejante feito dos segundos. Cria, então, raiz fixa, embrenhando na alma. É, agora, um órgão bem acabado, que pulsa sozinho e impõe ao corpo subjulgado, sua voz de comando.
Um soneto assim definiria o amor. Mas essa história de amor,recita sobre o ódio.
O cheiro impregnava minhas narinas com fragmentos de cinzas. Época de seca. Meus olhos ardiam. Nunca gostei dessa rua. Tem barulho de nada. Os cachorros dormem no asfalto, na ânsia de morrer de tédio. Os raros carros desviam, soando a buzina, única manifestação de vida em horas. Tudo é só um emaranhado de ruas incompletas, que terminam no beco de placas amarelas, sinalizando a falta de saída.
Toda última semana do mês eu comprava o jornal de classificados. Circulava dois ou três anúncios de aluguel. Anotava o telefone num pedaço de papel. Dobrava com esperança, enfiava meu futuro no bolso da calça jeans, e ele se esfarelava depois, na máquina de lavar roupa. Tédio dá tanta preguiça, que a gente cansa até de querer tentar.
Conheci Lindinalva na janela da cozinha, enquanto enxugava o talher solitário do meu almoço. Conheci, na verdade, sua voz, mansa, falando sozinha enquanto alinhava vasinhos de pimenta próximos ao vitrô, em busca de sol.
Um som neurótico começou a compor minhas madrugadas. Seu despertador zunia muito antes que eu estivesse apta a ter noção de tempo, espaço e da minha existência no mundo. Cinco da manhã. Ninguém que acorda a essa hora pode dizer que tem uma noite de sono. Junto com a vizinha, eu acabava despertando, levantava para tomar um copo de leite, e já me pegava cantando suas músicas, horríveis, como tudo que é inesquecível.
Espiava pela cortina da sala de jantar. A moça saía contente. Seus cabelos eram presos num coque grosso, e eu já imaginando que seus fios soltos chegassem próximos ao pé. Tinha o mp3 no ouvido, uma nécessaire salmão no braço, os olhos cor de mel e um marasmo de vida inofensiva, à tira colo.
Minhas manhãs eram recheadas de papéis: textos para traduzir, monografias para digitar. O diploma não me foi de grande serventia, mas os anos de inglês sim. Fazia umas contas, um dinheiro no banco, alguma coisa para receber. Poderia pagar um aluguel maior. Poderia partir. Ainda assim, nunca parti. Até hoje. Até depois de toda aquela nuvem de fumaça.
O barulho da mangueira esguichando era a rotina do fim de tarde. A vizinha tinha mania de limpeza. Acho que esqueceram de avisar para ela que estava acabando a água do planeta. Ouvia o esfregar do chão de cimento. Disseram por aí, que na falta de dinheiro para o piso, cobriram toda a casa com uma tinta brilhante, dessas laváveis.
Às vezes minha curiosidade vencia, eu me camuflava no tecido da cortina e espiava aquela moça, ajoelhada, a buchinha na mão desengordurando os cantos e vãos. Pensei que tamanha dedicação fosse coisa antiga, dos causos da minha avó. Gente sonsa me dá pena.
Na roda dos assuntos monótonos do bairro, a vida da vizinha era a novidade dos fuxicos. Na padaria, no mercado, na loja de roupa no sobrado da esquina, muito se sabia sobre a moça recém casada, pra quem o lar era o refúgio dos pais severos e um alívio conseguido a custas de intensas lágrimas, quando o noivo ameaçou fugir das suas responsabilidades.
Pelo desejo de enfim viver em paz, essa paz morna e linear, ela suportava até os deslizes do marido. Por isso ele chegava tão tarde. Por isso ela lustrava os móveis até o pensamento cansar e cair de sono. Ela só queria se aquietar, se encostar na sombra desse seu abismo. Já eu só queria sair, logo, antes que esse abismo me sufocasse, sem luz nem ar.
O caminhão veio carregar a mudança. Peço mais cuidado com a mesa. Valor sentimental. Era da minha avó. Madeira maciça, nada dessas lâminas compensadas descartáveis, que se vendem ultimamente.
Naquele dia em que o despertador da vizinha não tocou, acordei angustiada. O ruído da música irritante era o sinal inconveniente de que tudo corria dentro da normalidade.
Perambulei pela casa enquanto a noite ainda se desfazia, em tons de laranja. Ouvi o chuveiro ligar. Quase uma hora. Desligou. Ligou novamente. Ruídos frenéticos se misturavam a gemidos de dor. Conseguia imaginar ela raspando com força, com fúria, com nojo, algo que incrustrava na pele. Sempre duvidei da sanidade mental de gente com mania de limpeza.
Bateu o portão entre soluços. Espiei com receio. Alguma briga. Logo a mágoa cansa, o choro míngua e tudo volta a inércia.
Horas depois veio o cheiro.
A dona do imóvel em breve chega para buscar minhas chaves. Sempre imaginei o momento em que sairia. Não sei porque não saí. Só vontade às vezes é pouco. Ação precisa de mais do que planejar. Precisa de sentimento. De explosão. De de repente.
A parede da cozinha ficou preta. A fuligem formou um borrão. Perdi o fogão e a geladeira. Por sorte senti o cheiro.
Quando a nuvem de fogo começou a consumir as telhas, os estalos confirmaram minha suspeita. Corri ao portão atônita, ainda há tempo de acenar adeus para a vizinha. Ela me respondeu de lábios cerrados, imponente na sua amargura. Estava com a bolsa salmão, apoiada sobre o corpo nu. No quintal um amontoado de roupas, fotos, móveis e objetos de decoração se esfumaçavam ao vento. Tudo estava sujo, encardido e contaminado.
Revirei a bolsa na procura do celular, liguei para o Corpo de Bombeiros. O vizinho chegou. Ficou sóbrio instantaneamente, de susto. Neste fim de rua, de fim de mundo, até socorro se perde. Não deu tempo de salvar a minha cozinha.
A dona do imóvel chegou. Prometeu agilidade na reforma. Em breve poderia novamente por o cômodo no aluguel. Lamentou o ocorrido. Todos estavam impressionados com o desequilíbrio da vizinha. O marido ainda pagava as prestações do financiamento da casa.
Evitei prolongar o assunto. Não disse o que sabia sobre as bolhas purulentas, aquele odor fétido. A vizinha gostava de limpeza. Tentou esfregar. Mas se espalhou pelo corpo todo. Seguia de alto a baixo todo o caminho das carícias do amor. Correu ao médico. Pediu encaixe, o postinho do bairro estava com a agenda do mês lotada. Chorou, desesperada. Ela era boa pessoa. Sabia perdoar. Mas seu limite era a assepsia.
No fim, sorte minha que a raiva da vizinha se alastrou muro afora, infectando minha rotina. Agora eu tinha que sair.
Tem sentimento que brota acanhado, alternando entre ser e não ser; se faz intenso e nulo na velocidade fugaz de um respiro. Alimentado pelo tempo, vira corpo robusto, se nutrindo do hormônio gotejante feito dos segundos. Cria, então, raiz fixa, embrenhando na alma. É, agora, um órgão bem acabado, que pulsa sozinho e impõe ao corpo subjulgado, sua voz de comando.
Um soneto assim definiria o amor. Mas essa história de amor,recita sobre o ódio.
O cheiro impregnava minhas narinas com fragmentos de cinzas. Época de seca. Meus olhos ardiam. Nunca gostei dessa rua. Tem barulho de nada. Os cachorros dormem no asfalto, na ânsia de morrer de tédio. Os raros carros desviam, soando a buzina, única manifestação de vida em horas. Tudo é só um emaranhado de ruas incompletas, que terminam no beco de placas amarelas, sinalizando a falta de saída.
Toda última semana do mês eu comprava o jornal de classificados. Circulava dois ou três anúncios de aluguel. Anotava o telefone num pedaço de papel. Dobrava com esperança, enfiava meu futuro no bolso da calça jeans, e ele se esfarelava depois, na máquina de lavar roupa. Tédio dá tanta preguiça, que a gente cansa até de querer tentar.
Conheci Lindinalva na janela da cozinha, enquanto enxugava o talher solitário do meu almoço. Conheci, na verdade, sua voz, mansa, falando sozinha enquanto alinhava vasinhos de pimenta próximos ao vitrô, em busca de sol.
Um som neurótico começou a compor minhas madrugadas. Seu despertador zunia muito antes que eu estivesse apta a ter noção de tempo, espaço e da minha existência no mundo. Cinco da manhã. Ninguém que acorda a essa hora pode dizer que tem uma noite de sono. Junto com a vizinha, eu acabava despertando, levantava para tomar um copo de leite, e já me pegava cantando suas músicas, horríveis, como tudo que é inesquecível.
Espiava pela cortina da sala de jantar. A moça saía contente. Seus cabelos eram presos num coque grosso, e eu já imaginando que seus fios soltos chegassem próximos ao pé. Tinha o mp3 no ouvido, uma nécessaire salmão no braço, os olhos cor de mel e um marasmo de vida inofensiva, à tira colo.
Minhas manhãs eram recheadas de papéis: textos para traduzir, monografias para digitar. O diploma não me foi de grande serventia, mas os anos de inglês sim. Fazia umas contas, um dinheiro no banco, alguma coisa para receber. Poderia pagar um aluguel maior. Poderia partir. Ainda assim, nunca parti. Até hoje. Até depois de toda aquela nuvem de fumaça.
O barulho da mangueira esguichando era a rotina do fim de tarde. A vizinha tinha mania de limpeza. Acho que esqueceram de avisar para ela que estava acabando a água do planeta. Ouvia o esfregar do chão de cimento. Disseram por aí, que na falta de dinheiro para o piso, cobriram toda a casa com uma tinta brilhante, dessas laváveis.
Às vezes minha curiosidade vencia, eu me camuflava no tecido da cortina e espiava aquela moça, ajoelhada, a buchinha na mão desengordurando os cantos e vãos. Pensei que tamanha dedicação fosse coisa antiga, dos causos da minha avó. Gente sonsa me dá pena.
Na roda dos assuntos monótonos do bairro, a vida da vizinha era a novidade dos fuxicos. Na padaria, no mercado, na loja de roupa no sobrado da esquina, muito se sabia sobre a moça recém casada, pra quem o lar era o refúgio dos pais severos e um alívio conseguido a custas de intensas lágrimas, quando o noivo ameaçou fugir das suas responsabilidades.
Pelo desejo de enfim viver em paz, essa paz morna e linear, ela suportava até os deslizes do marido. Por isso ele chegava tão tarde. Por isso ela lustrava os móveis até o pensamento cansar e cair de sono. Ela só queria se aquietar, se encostar na sombra desse seu abismo. Já eu só queria sair, logo, antes que esse abismo me sufocasse, sem luz nem ar.
O caminhão veio carregar a mudança. Peço mais cuidado com a mesa. Valor sentimental. Era da minha avó. Madeira maciça, nada dessas lâminas compensadas descartáveis, que se vendem ultimamente.
Naquele dia em que o despertador da vizinha não tocou, acordei angustiada. O ruído da música irritante era o sinal inconveniente de que tudo corria dentro da normalidade.
Perambulei pela casa enquanto a noite ainda se desfazia, em tons de laranja. Ouvi o chuveiro ligar. Quase uma hora. Desligou. Ligou novamente. Ruídos frenéticos se misturavam a gemidos de dor. Conseguia imaginar ela raspando com força, com fúria, com nojo, algo que incrustrava na pele. Sempre duvidei da sanidade mental de gente com mania de limpeza.
Bateu o portão entre soluços. Espiei com receio. Alguma briga. Logo a mágoa cansa, o choro míngua e tudo volta a inércia.
Horas depois veio o cheiro.
A dona do imóvel em breve chega para buscar minhas chaves. Sempre imaginei o momento em que sairia. Não sei porque não saí. Só vontade às vezes é pouco. Ação precisa de mais do que planejar. Precisa de sentimento. De explosão. De de repente.
A parede da cozinha ficou preta. A fuligem formou um borrão. Perdi o fogão e a geladeira. Por sorte senti o cheiro.
Quando a nuvem de fogo começou a consumir as telhas, os estalos confirmaram minha suspeita. Corri ao portão atônita, ainda há tempo de acenar adeus para a vizinha. Ela me respondeu de lábios cerrados, imponente na sua amargura. Estava com a bolsa salmão, apoiada sobre o corpo nu. No quintal um amontoado de roupas, fotos, móveis e objetos de decoração se esfumaçavam ao vento. Tudo estava sujo, encardido e contaminado.
Revirei a bolsa na procura do celular, liguei para o Corpo de Bombeiros. O vizinho chegou. Ficou sóbrio instantaneamente, de susto. Neste fim de rua, de fim de mundo, até socorro se perde. Não deu tempo de salvar a minha cozinha.
A dona do imóvel chegou. Prometeu agilidade na reforma. Em breve poderia novamente por o cômodo no aluguel. Lamentou o ocorrido. Todos estavam impressionados com o desequilíbrio da vizinha. O marido ainda pagava as prestações do financiamento da casa.
Evitei prolongar o assunto. Não disse o que sabia sobre as bolhas purulentas, aquele odor fétido. A vizinha gostava de limpeza. Tentou esfregar. Mas se espalhou pelo corpo todo. Seguia de alto a baixo todo o caminho das carícias do amor. Correu ao médico. Pediu encaixe, o postinho do bairro estava com a agenda do mês lotada. Chorou, desesperada. Ela era boa pessoa. Sabia perdoar. Mas seu limite era a assepsia.
No fim, sorte minha que a raiva da vizinha se alastrou muro afora, infectando minha rotina. Agora eu tinha que sair.