Um assassinato justificado
Nos encontramos por acaso. Ele voou em minha direção, pousou no meu ombro esquerdo e foi tudo que bastou. Desde então, não nos separamos. Eu o adotei como uma espécie de filho, uma outra parte de mim que me encontrou. Nunca dei-lhe um nome. Tentei chamá-lo de João, de Aquiles, de Deus. Mas nenhum nome lhe caía bem, nenhum nome o definia. Então passei a chamá-lo apenas de “meu pequeno”. Ele parecia gostar de ser chamado assim. No meu minúsculo apartamento, dividíamos uma vida da mais íntima amizade, sempre compactuando, nunca fingindo. Ele era um pássaro excessivamente delicado, tinha umas asinhas marrons com uns riscos que brilhavam no escuro, parecendo cristal. Às vezes, durante a madrugada, eu acordava zonza e lá estava ele sobre a janela, asas abertas, refletindo a lua ou voando ao redor da lâmpada, um menino brincando. Seu bico, ah! tão frágil, eu mal podia sentir quando me beliscava os dedos, era como uma agulhinha me injetando amor. Não parecia ter qualquer força nele, até para amar era suave.
Todas as manhãs íamos para nossa caminhada. Assim que eu acordava, a primeira coisa que via era aquela figura humilde sobre meu peito, bicando no lado esquerdo. Eu sorria, pondo de leve o dedo na sua cabeça marrom. Ele beliscava minha unha e eu queria chorar: nosso primeiro contato era fundido nesta bondade imperfeita, uma pureza a lapidar-se - ou não seria possível? Eu levantava, lavava o rosto com água fria e oferecia-lhe o dedo. Ele aceitava e confiavava-me a responsabilidade de conduzi-lo – sabíamos ambos que era mesmo ele que me conduzia. No bairro, nossa amizade já era conhecida: Lá vai a mãe com seu filhinho, diziam ao ver-nos passar, ele sempre no meu ombro esquerdo, beliscando minha orelha. Não cantava, pobrezinho. Desde a primeira vez, nunca o ouvi. Ensaiei com ele durante algum tempo. Assobiava para que ele imitasse. Em vão. Era mudo. Mudo como um abismo. Mas nem por isso deixava de ser aquela criatura alegre e que alegrava meus dias. Não lembro, de verdade, um único dia em que eu estivesse triste ao seu lado. E, se ficasse, ele roçava suas asas na minha mão, voava dum lado a outro do apartamento, e eu ia junto como se asas nascessem em minhas costas.
Aquela manhã, por qualquer motivo estúpido, ele não me acordara. Abri os olhos com dificuldade e ele não estava diante de mim. Aturdida, a cabeça sonolenta, andei pelo corredor vagueando o olhar. Onde ele estaria? Eu me perguntava aonde teria ido o meu pequeno: Psiu! Meu pequeno, onde você está? Sem vê-lo, andando vagarosamnete pelo curto corredor, senti meu pé esmagar algo. Era ele. Que sensação terrível, meu Deus! E que medo. Senti sua carne macia sendo esmigalhada por meu pé. Gelei. Mal tive coragem de olhar. Havia sangue saindo de seu bico, os olhinhos esbugalhados, seu coraçãozinho saindo pela boca... as asinhas quebradas. Cobri o rosto com as mãos e, como se fora atingida por um veneno, aos poucos ajoelhei-me diante dele. Demorou até eu perceber o que havia acontecido – o que eu havia feito. Como podia ser tão perecível nossa amizade? Bastava uma distração, um não-querer? Meu pé estava imerso no sangue do meu pequeno. Não chorei. Uma opacidade tomou meu coração e fiquei ali estática, as artérias pulsando cheias de terror, ainda em choque. Até que peguei uma sacola plástica, o pus dentro e joguei na lixeira. Eu me senti meio perdida, como antes de conhecê-lo, pior. Eu deveria ser castigada? Deveria, sim. O que fiz foi imperdoável. Havia a culpa. Havia mais o medo, aquela estupidez e eu tão vulnerável. Psiu! Meu pequeno, foi sem querer viu?
No apartamento apertado, meu corpo comprimiu-se. Abri janelas, portas. Hoje coleciono alguns pássaros, todos em gaiolas que aprendi a lição, embora até hoje não consiga entender droga nenhuma do que aconteceu.