O Conto do Vigário

Quando os compadres foram para Lisboa era o Pedrito uma criança. Hoje, moço feito, ostentando aquele bigode façanhudo, só vagamente lembrava o petiz ranhoso a quem, já no uso da palavra, levaram à purificação do baptismo. “ Quatro anos teria, na ocasião. Recordas-te, Otelinda?” Claro que se recordava. Que vexame fora a cerimónia, com o pequeno ensonado e birrento, a chamar puta à avó e a dar pontapés na tia Margarida que vinha de Braga, de propósito, para a festa! À força de mimos lá o levou o Afonso, pela mão, até à Pia, já o senhor padre parecia soltar lume pelas ventas! Enfim, já atrasado para a missa das dez, acelerando o que podia do latim, lá foi o senhor cura pondo o santo óleo na testa e no peito do rapaz que, com a promessa de muitos presentes, todos os que ele quisesse, sufocara até os soluços. O pior foi depois, quando o Pedrito, ao ser-lhe posto o sal da graça entre os lábios, perguntou ante o pasmo geral: “ Pai, o que é que este sacana me pôs na boca?” Enfim, terminou em forte grita o resto do acto quando a criança reagiu à água fria que o oficiante se viu grego para conseguir pôr-lhe cabeça abaixo. Já ninguém tomou nota dos recados sobre os deveres dos padrinhos e o grupo, sucumbindo à vergonha de quem estava na igreja, saiu estugando o passo até à latada do primo Augusto onde o almoço teve lugar.

“ Já lá vão vinte anos, mulher! E há uns dez que não nos falamos nem por telefone!” Espantoso era o convite que lhes faziam os compadres, ao fim de tanto tempo de silêncio. Pela carta pareciam estar bem de vida, que tudo é relativo, está visto. Na terra passaram por grandes apertos e, quando assim é, uma sopa à hora certa até pode parecer coisa de ricos. “ Aceitamos, António? Ah que saudades eu tenho da comadre, tão amigas que éramos, sempre juntas para todo o lado, como irmãs, a bem dizer. Que dizes, Toino? Abalávamos sexta à noite e voltávamos só na segunda-feira. Anda, diz que sim, homem!” E…assim foi. Telefonaram para o número que a Alice botara na carta para ser deixado recado, voltaram a ligar para a confirmação e o resto da semana voou entre os preparativos e o acautelar do que ficava por fazer na sua ausência. Distribuíram as tarefas pelos vizinhos no tocante ao rateio do milho pelos bicos, da ração pelos porcos e do feno pelas vacas que aguentariam bem sem ter renovada a cama um fim-de-semana.

António preparou o presunto, igual àquele não o provavam os compadres em Lisboa, encheu um garrafão com azeite colhido naquela altura e arrolhou as garrafas da aguardente passando-lhes baraço nas rolhas para que tudo chegasse às mãos do compadre Afonso em bom estado. Por seu lado a Otelinda, depenou e fritou o frango, amanhou o coelho e fez os bolos de bacalhau para a viagem. Tudo ficou que nem um brinco, na cesta da merenda, garrida pelo azulão dos quadrados da toalha, enfeitada pela sêmea recém-cozida, vistosa pela cor dos frutos que colocara ao cimo a fim de se não pisarem. Copos não eram precisos, que nem ela nem o seu homem eram gente fina e não cabia nojo no gargalo da garrafa do vinho que, de resto, cada um limpava com a palma da mão como manda a boa educação na aldeia. Aprestados ainda com a maleta para a muda de roupa, enfrentaram, suados, o esforço de romper, corredor do comboio dentro, por entre matarruanos que preferiam ir de pé, à conversa, suportaram estoicamente os olhares hostis dos que enchiam a cabina e lá se acomodaram, como puderam, prontos para um estirão de muitas horas que aquela composição era das que paravam em todo o lado, mijentas, a descarregar e a carregar pessoas e coisas, materiais e caixas, um ror de caixas, um monte de sacas, um nunca mais acabar de cestas com frescos e aves. Enfim, confortados com o calor e mais afeitos à companhia, ofereceram do pão e do queijo que o Toino, logo aos primeiros solavancos da carruagem, quisera comer para contrariar o enjoo. De onde eram, que faziam, o que os levava a Lisboa? “Ah, não conhecem! Pois vão gostar! Aquilo é diferente, sabem? O pessoal veste à moda, anda cheiroso…campo quase não há, que é tudo casario e carros, multidões em correria, lojas bonitas, tudo do bom e do caro, pois então! Mas…vão gostar, tanto mais que estarão à vossa espera e sempre é diferente ter acompanhante quando a terra nos é estranha. Se não, logo em Santa Apolónia apanham um táxi que, em menos de nada, vos leva à Bica que até nem é muito longe. “

Chegaram com quase duas horas de atraso, ia o sol já alto. A natural confusão da gare, a pressa que toda aquela gente tinha, a zoeira das pessoas, os gritos dos bagageiros, o pessoal que queria embarcar e ainda o que tentava achar caras conhecidas no meio de tudo aquilo, deixaram-nos sem pinga de sangue. À Otelinda tremiam-lhe as pernas enquanto pensava que, ali, só mesmo por milagre reconheceria os compadres. Quanto a António, às voltas com as bagagens, chamou sostra à mulher que não tomava o devido tento no transporte da cesta e do garrafão do azeite. Depois, arrependido, passou-lhe o braço pelo ombro, ajeitou-lhe o xaile e afagou-lhe a trança mas o mal estava feito pelo que ficariam, amuados, guardando os haveres até que a Estação, tão rapidamente como se enchera, ficasse naquela desolação desértica. E dos compadres, nem rasto! Quando, exaustos, decidiram então alugar o táxi, batiam as onze no grande relógio do átrio.

Muito solícito, o taxista ajudara a acomodar as coisas no porta-bagagens e lá seguiram, pasmados com a grandeza da cidade, encantados com o Terreiro do paço, reconhecendo o Castelo de S. Jorge e o Campo Pequeno, maravilhados com o Aqueduto das Amoreiras, apreciando a Biblioteca Nacional … da Bica é que o homem não falava e eles queriam ir para a Bica! Pararam, por fim, junto ao Elevador. “ Para ali não subo eu, Toino. E se aquilo cai por aí abaixo, homem?” Mas…não caiu e puderam, pergunta aqui, informação dali chegar á porta dos compadres com o dinheiro todo gasto e ajoujados com o peso da bagagem. Otelinda já se arrependera mil vezes de ter vindo e o marido, a avaliar pelo ar de contrariedade, também. “Só falta não estarem em casa”, pensaram, mas, ao fim de um novo toque, a porta abriu-se para uma saleta atravancada de móveis e ambos puderam então ver a comadre, gorda e formosa, do outro lado da mesa. “ Afonso, oh Afonso, chegaram os compadres!” Abraçaram-se por fim e era como se o tempo não tivesse passado. Choraram todos, menos o Pedrito que se deixara ficar a um canto a ver a cena, enlevado com ela, também comovido, que um homem, mesmo da G.N.R., não é de pedra.

Todos tinham ido à Estação mas todos, por uma ou outra razão, não puderam esperar que o comboio atrasado chegasse. Afonso tinha de render o turno no Elevador, Pedro estava de serviço e ela, mau grado o jeito de senhora, a permanente e os colares, não passava de uma simples aldeã e receava ficar por lá sozinha.

Aquietada a saudade e retomada a intimidade passaram à entrega dos víveres: presunto e bagaço para o compadre; o coelho para o jantar, as couves, as azeitonas e a broa para a comadre. “ E o azeite, Otelinda? Onde puseste tu o garrafão, mulher? Trá-lo cá para a cozinha, que é o lugar dele”. A verdade é que, viram-no ambos, o garrafão não era o mesmo! Trocara-se no táxi, por certo com o que o condutor lá trazia. A decepção foi geral quando verificaram que aquele só continha água, água da torneira, vulgar e limpa.

“Truque antigo, madrinha, truque antigo. Aposto que o patife do taxista vos mostrou Lisboa inteira, se ofereceu para pôr a bagagem atrás e até foi simpático, coisa em que a maioria dessa cambada já não perde tempo. Mas deixem lá isso, que já nada adianta. Cá nos havemos de arranjar todos e nada vos faltará até regressarem à terra”. Mas Otelinda não se conformava. Nem era tanto pelo azeite perdido mesmo considerando o baixo teor de acidez e o paladar macio, era a frustração com que se fica depois de passarmos por lorpas, “ a modos como que uma tristeza, Pedrito, por ver que há tanta gente tão fraca de razão, tão sem medo da Divina Providência! Parecia um anjo e, no fim das contas, não passava do demónio fardado de gente boa. Meu rico dinheirinho!” Bem tentaram consolá-la, o marido e o Afonso, o afilhado e a Alice, dizendo-lhe que já nada remediava, que poucos se podiam gabar de ter visto a capital toda a bordo de um táxi, que havendo saúde ganha-se outro dinheiro, que a experiência nestas coisas acaba por nos abrir os olhos para outras e por aí…

Passou-se o sábado a falar no assunto mas, depois, na manhã do dia santo, regressando elas da missa, de braço dado como antigamente, esquecidas já de tristezas, sorrindo nos seus pequenos luxos, cheirosas de alfazema e permeáveis à alegria, eis que Otelinda torce o tacão do sapato e se desequilibra. Para não ir de todo ao chão teve de se apoiar na amiga e no lancil do empedrado passeio. Foi então que a viu, dobrada como um recado secreto e de um verdinho inconfundível! A nota era das maiores naquela época e nem outra mais importante havia, que mil escudos eram mil escudos e com isso muitos chefes de família sustentavam a casa o mês inteiro! “Vês tu, mulher, como o Santo te deu resposta? Que te dizia eu, hein? Bem sei que ele às vezes se faz de mouco e difícil porque são muitas a querer marido e algumas, benza-as Deus, sem arcaboiço que lhe facilite a tarefa. E, depois, há as velhas que o maçam com pequenas coisas, habituadas, de cedo, a verem nele o único de serviço… sim porque poderoso é Santo Antoninho ou não tivesse ele andado com Jesus ao colo!”

Ainda pensaram procurar o dono da nota que acharam mas estava visto que era compensação sagrada e a vontade do Senhor não se discute. Acresce que, botadas as contas ao custo do azeite e da vasilha, somado a isso o excesso do preço justo de uma corrida de táxi de Santa Apolónia à Bica e considerando que, Otelinda e o seu homem, tiveram gastos de viagem para que o caso se desse, sobravam só…quarenta escudos. “ Exactamente, amiga, quarenta escudos é o que terás de voltar ao Santo como troco. Contas são contas e as boas fazem os bons amigos!”

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 03/10/2011
Reeditado em 03/10/2011
Código do texto: T3255144
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