Desconstruindo Narciso
Ele acordou de um sono que lhe parecia eterno, não saberia dizer como foi parar na cama, mas acordou lá, deve ter ido dormir antes das 18h, o que é raro já que ele costuma virar a noite acordado. Debruçou-se sobre a pia para lavar o rosto como se fosse vomitar as vísceras, deu de cara consigo mesmo diante do espelho, parecia um guaxinim pós punk que acabara de despertar da época de hibernação. Ele parece não ter certeza de que guaxinins hibernam. O espaço do banheiro é iluminado por um pequeno vitrô no alto da parede como uma cela de cadeia. Diante de seu reflexo ele pode perceber o quanto seu rosto tem traços bestiais! Quase animalescos. Mas não se incomoda com isso, na verdade, esse fato o agrada. “Devo ter a beleza de um cavalo, um garanhão!” pensou, mas logo se envergonhou do trocadilho imbecil perante o olhar de reprovação de seu reflexo. Na cozinha ele fuma, sentado a mesa, encarando a parede morta, vazia de enfeites. Ele fuma por que acha elegante, e só. Na verdade ele odeia o cheiro de cigarro, mas fuma do mesmo jeito. Sem saber. Ao apagar o cigarro ele ergue o cinzeiro de prata, e ali, outra vez, está seu reflexo com o mesmo olhar desafiador. Ele põe o objeto de volta à mesa e sai da cozinha. Na rua ele procura esquecer toda essa recente “estranheza”, porque na rua ele não pensa, ele não é capaz de pensar em meio à movimentação urbana. Mas agora ele o vê em pequenos vultos, refletidos em vitrines, carros e qualquer coisa espelhada. Ele fica onde deve ficar, onde é o lugar dele, onde ele não deve fazer nada além de sorrir. Por todos os carros pelos quais ele passou, ele o viu, isto é, seu reflexo, que estava ali e em todo lugar para olhá-lo com reprovação. Observador e observado, funcionam como um duplo. E assim foi indo, ele passou a ter medo do espelho que o reflete, do reflexo que o olha bem nos olhos, vigiando-o. Essa figura ele imaginava que o seguia por todos os cantos da casa e fora dela. Acordava sempre sobressaltado, suando frio. Ele agora era um bicho acuado, sua vida era uma constante subtração de si mesmo. O espelho lhe mostrava a verdade, verdade da qual ele fugia. No espelho ele via-se como outro, com todos os defeitos em evidência, a mercê do julgamento. Ele chegou a tal ponto que não podia mais fazer o que precisava. Ele foi, mas não sorriu. Ele entrou no carro, de olhos fechados. Mas não cumpriu com o seu dever, pois havia espelhos ali, e ele viu-se como uma evidência, magra, suja e anônima. Então ele chorou. E chorar era ridículo. O dia era abafado e quente, o calor o fez questionar-se em que labirinto se perdera, e principalmente como permitiu perder-se assim de forma tão tola. O peso dos anos, embora poucos, lhe pesaram os pés. Ele então caminhou de forma arrastada, com a cabeça baixa em meio à multidão, estava indo de volta para casa. Ele estava definitivamente cansado, ligou o chuveiro e tomou um banho frio. A água gelada pesava ainda mais. Saiu do box e acendeu um cigarro, subiu o olhar e o viu, ali em sua frente, a figura nua e magra, com o cigarro entre os dedos. Ele apagou o cigarro, o reflexo continuou a lhe encarar e ele tinha certeza que o reflexo o olhava de forma cínica, com um quase sorriso irônico. Ele se aproxima ao espelho com o mesmo olhar do reflexo, com o mesmo sorriso, e assim como antes ele se debruça sobre a pia, encara o reflexo cara a cara por um tempo, e então ele junta o rosto ao do reflexo, quase beijando, diz lentamente, quase um sussurro:
-Para de me perseguir!
E com os punhos cerrados lhe desfere um soco, e um grito, e um sorriso. Ele recua com as mãos sangrando, pega o cigarro, encosta-se na parede fria, senta no chão. Traga, e sopra a fumaça pro canto.