A correnteza da saudade
L uzia, enfim, a manhã. Enquanto ela se espreguiçava e bocejava, no canal os botes confundiam o rosicler com seus linhos multicores que se enfunavam empurrados pela brisa de boreste, devassando a bruma leitosa e fria. Dentro deles alguns homens de pé, olhos esgazeados e atentos à proa. Um futuro de certezas borbulhava; leme a prumo, quilha esgarçando lama, limo e sal. Chegavam os ilhéus bordejando os coloridos batéis carregados de ovadas tainhas, siris azuis, camarões vitrificados. Os pés curtidos, mãos doridas, esporões, farpas que vão cravadas nos cabos da vela mestra se encravando nas palmas calejadas.
Mal acostam no remanso do cais do mercado, ainda amarrando os nós que se prendem aos cabeçotes ferrugentos, aglomerados atravessadores atropelam-se à beira-cais gritando preços, ridículas ofertas pelo trabalho das noites de frio, alma encharcada.
Na ilha ficaram mulheres prenhes de mar, queimando o carvão e garavetos para o fogão de barro; é o milho cozido, pirão, feijão, arroz. E peixe, que todos os dias é sexta.
A tarde sopra morena e sorridente levando para casa a felicidade ligeira. O vento a favor desfralda o retalho de chita; ela vai ganhar saia nova. Espera o beijo.
No cais, pouco a pouco vão saindo os compradores satisfeitos; peixe gelando, caminhão fretado, lucros certos. Hora da cerveja, do pastel de camarão no quiosque do mercado.
Ninguém percebe que ao longo do beiral de pedra caminha um velho homem, magro, rosto sofrido, olhos esmaiados procurando ver um resto de nada. É um antigo pescador que viveu outrora do outro lado e que um dia já sonhou, como tantos; que cores teriam suas auroras, seus anseios?
Hoje, miserável, vai em busca de um trocado; pra ele basta um meio dia, um copo de vinho e, pudera, um peixe rei frito na hora.
E a saudade de uma vida inteira que a correnteza arrasta todo dia pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, pra lá...
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Conto premiado no concurso do Jubileu de Prata da Academia Riograndina de Letras.