Andrés

Para a saudosa Rita Pavão (R.I.P., Darling).

Grande André Ratón!

Conheci-o quando tinha cinco anos na brincando na caixa de areia da Praça 29 de março. Eu era quatro meses mais moço que ele. Lembro-me da primeira impressão ao ver aquela figura de cabelos abaixo dos ombros. Primeiramente pensei que fosse uma garota. Mas quando reparei melhor o vi com indiozinhos de plástico pintados à mão e me aproximei. Virei amigo de infância do cara no primeiro sorriso. Descobri que frequentávamos o mesmo Jardim da Infância em turmas separadas e na hora do intervalo sempre lanchava com ele. Erámos parceiros nas tardes preguiçosas e nos fins de semana o que me levou a conhecer também seus pais. Ratón não era seu nome. Seu nome de batismo era André Hughes Gutiérrez. Seus velhos tinham vindo do Uruguai. Seu pai não se dava com seus irmãos e decidiu mudar de vida e morar no Brasil. Porque ele tinha escolhido o Brasil e ainda por cima Curitiba é um mistério insolúvel para mim. Mas, vamos em frente. Crescemos juntos. Ou como se diz aqui na província: “fomos criados juntos”. No principio eu o chamava de André. E adorava ir a sua casa e o ver falando castelhano com seus pais e um português cheio de sotaque com o resto do mundo. Construímos nosso primeiro de carrinho de rolimã juntos. Ele também conheceu meus pais. E meus tios e meus avós. Jogávamos no mesmo time de pelada. E eu também era André. Já na primeira série, que cursamos no Grupo Cleto juntos, eu virei o André e ele o Gutiérrez mas na terceira ele tinha dado seu próprio apelido e ficou sendo o Ratón. Até hoje nem posso imaginar o que poderia ter feito um garoto de nove anos pensar que era um murino.

Coisas da vida? Vai sonhando. Éramos inseparáveis. Às vezes ele me contava que seus pais tinham brigado com ele e lhe dado uma bela de uma surra de cinto. Eu ficava horrorizado com isso, pois na minha casa reinava ainda uma aura de hipismo constante. Na vitrola (lembra-se disso?) dos meus coroas sempre estava rolando música clássica, jazz de todas as vertentes, blues melancólicos e coisas como Led Zeppelin, o Airplane, os Doors & o Black Sabbath. Meus velhos moldaram muito meu caráter e meu gosto musical. Meu pai trabalhava como advogado trabalhista e minha mãe era professora universitária. Por toda a infância eu os vi queimando fumo entre eles ou com amigos que nos visitavam e falando discretamente de política e repressão. Peguei-me agora escrevendo sobre os meados dos anos 70! Eu tive uma criação - digamos – sob o regime de “liberdade vigiada”. Poderia fazer o que bem entendesse, porém eu mesmo que segurasse as consequências. Nunca tive problemas com eles. Só quando fiz quinze anos é que meu pai ficou completamente ensandecido por eu estar ouvindo Sex Pistols, Ramones, G.B.H. e todo aquele lance punk. Para ele isso não era música, só um amontoado de barulho que o deixava realmente abalado. E quando comprei um colete de couro e uma calça com rasgos e buracos estratégicos num brechó, um bracelete com tachas na Praça Santos Andrade e uns coturnos pretos na loja Civil e Miltar da Rua Riachuelo e cheguei em casa vestido desse jeito e ainda por cima com um hálito denunciador que eu tinha bebido vinho barato demais e estava andando com “indesejáveis” é que o caldo entornou mesmo e fui obrigado a ir trabalhar meio período em seu escritório como “ pau para toda obra”. Aliás, eu não vi mais o Ratón com tanta frequência. Não tínhamos brigado nem nada. Nem perdido o contato. Apenas seguimos nossos rumos um pouco mais separados. Sempre que nos encontrávamos, nos abraçamos e ficávamos fofocando e colocando o papo em dia e bebendo cervejas e fumando cigarros por horas a fio. Numa dessa é que fiquei sabendo da morte de seu pai. Ratón estava bem abalado, mas tentava se conformar paulatinamente. Também começara a trabalhar em uma gráfica para ajudar na casa e para seus pequenos confortos. Parecia satisfeito pelo emprego. E nessa ocasião também me disse que tinha escrito umas coisas que tinha gostado e começava a pensar seriamente nisso como carreira. Achei bem interessante e lhe informei isso. Falou-me também que durante o ensino médio iria estudar bastante para entrar na Universidade Federal e cursar Jornalismo e que estava ouvindo exatamente o mesmo som que eu e que sua mãe ficava louca com aquilo. Normal. Quase nove horas da noite nos despedimos e trocamos telefone para sair outras vezes. E assim eu levava a vida: O trampo no escritório do meu pai, muito som na cabeça, fumando minhas ervas aqui e ali e transando com qualquer uma que quisesse. Era uma boa vida, não posso negar.

Quase no fim dos anos oitenta, quando meu pai recebeu uma bolada de vários dígitos como honorários e resolveu mudar de ramo. Queria promover eventos culturais e eventualmente abrir uma galeria de arte e uma editora. Minha mãe ficou exultante e ofereceu-se para ser sua sócia utilizando como capital de giro suas economias. Como minha família não “tinha uma reputação a zelar” não podia deixar seu único filho o dia todo bundando com as minas e vadiando e enchendo a cara à valer, então eu teria uma colocação qualquer na empresa. Em resumo eu iria trabalhar para o meu querido genitor de novo. Fiz uma contraposta bem interessante: se eu conseguisse qualquer comissão a mais nos eventos uma parte seria minha. Papai torceu o nariz no inicio, todavia acabou aceitando. Buscamos uma casa para sediar a empresa e pela primeira vez na vida percebi que eu poderia revolucionar esse negócio. Eu tinha dezenove anos incompletos. O André Ratón já tinha completado os seus.

Pela primeira vez eu tinha uma mesa própria com cadeira giratória, um arremedo de computador que meus coroas tinham mandado importar, uma máquina de escrever elétrica, um cesto de lixo, um porta canetas, um telefone e uma sala. Nada mal para um cara da minha idade, não acham? E com tudo isso meti a cara no trabalho. Entrei de cabeça. Agendava shows, fazia contatos e me disseram que uma vez eu acertei um trabalho de workshop para a hoje falecida Rita Pavão! Meus pais estavam orgulhosos de mim e eu deles. Parecia que essa empreitada iria dar certo. Ouvia musica e tempo todo quando estava em casa e no trabalho. Tinha ideais. A coisa começou a crescer quando trouxemos os “bolas da vez” da dita música sertaneja (eca!) para tocar pela primeira vez na cidade. Entrou dinheiro grosso. Minha mãe investiu essa grana na editora e coisa começou a decolar de verdade quando ela conseguiu um peso-pesado da literatura universal que o seu nome não cabe ser citado aqui. Em três anos estávamos na ponta do iceberg tudo que fora aplicada gerava um grande lucro. Não que tenhamos sido pobres em qualquer ocasião de minha existência. É que tínhamos agora um bom patrimônio que aumentava a cada ano. Resolvi lançar as bandas de amigos num esquema independente e deu certo. Eu me encarregava da distribuição e da publicidade e que os músicos tocassem seus instrumentos. Criar e vender são trabalho duro e desgastante. E estávamos todos trabalhando duro e colhendo os louros do nosso suor. Inclusive fui eu que organizei a primeira convenção internacional da cidade e o primeiro festival de musica alternativa que nos elevou a projeção nacional. Saía todas as noites. Meus velhos faziam seus jantares românticos todas as sextas feiras. Os autores que publicávamos em breve estavam vendendo bem e dando entrevistas em rede nacional para aquele Gordinho e para aquela senhora culta e loura que tem uma voz bem marcante. A vida não poderia ser mais interessante. Á muito eu trocara o “Campo Largo” pelo “Trapiche” e o “Santa Ana”, e o rabo de galo pelo melhor Bourbon que seu dinheiro pode comprar.

Numa quarta feira eu fui ao Largo da Ordem em um bar onde um amigo disse que seria realizada uma leitura de poemas. Eu fazia o papel de olheiro para nossa empresa. E isso era um pretexto e tanto para farrear e tentar levar alguma garotinha mais levada para a minha cama. Meus pais sempre foram muito liberais nos quesitos “sexo e erva” e desde os quatorze anos eles sempre preferiram que eu queimasse fumo em casa sob sua supervisão e levasse namoradas para o quarto do que ficar perambulando por aí. Quando cheguei dou de cara com o André Ratón, cigarro aceso no canto da boca e um belo copo de bloody mary na mão esquerda. Cumprimentamo-nos efusivamente e fomos descolar uma mesa. Pedi para a garçonete o mesmo que meu amigo estava bebendo, coloquei meu maço de cigarros e meu isqueiro na mesa e conversamos animadamente. Ratón me contou que tinha conseguido passar no vestibular e que em dois anos estaria formado. Disse que estava lendo e escrevendo como um possesso e que inclusive tinha conseguido publicar uns artigos em algumas revistas especificas e jornais udi grudi e que tencionava começar uma peça de teatro. Acendi um cigarro e lhe contei sobre a empreitada do meu pai. Reparei o brilho do seu olhar quando lhe passei toda a história. Dei-lhe meu cartão de visitas e ficamos a noite toda conversando, bebendo e rindo daqueles patéticos arremedos de poetas concretista que se utilizavam de tantos chavões batidos e clichês requentados que a minha vontade era manda-los calar a boca e desistir. Depois de três anos convivendo com a malta da intelectualidade e da verdadeira arte do Brasil tinham me deixado muito exigente! Despedimo-nos já altos como pipas e novamente combinamos de nos encontrar.

No dia seguinte procurei o artigo que ele tinha escrito e fiquei simplesmente de queixo caído! Meu amigo que infância estava escrevendo infernal e lindamente! Um cara lúcido, conciso, intrépido e que a cada linha e frase escorria ternura por seus dedos como mel. Coloquei meu office boy para trabalhar e mandei ele garimpar qualquer coisa que encontrasse do meu velho melhor amigo. Liguei para sua casa e sua mãe, Dueña Sol Gutiérrez me atendeu com aquele maravilhoso “acento uruguayo” para me dizer que seu filhinho tinha descolado um bico como revisor da editora concorrente e que tinha “mucho orgullo” de seu rebento e que eu teria que ir “a cenar con ellos uma noche qualqueira” e me passou o telefone de contato dele. Despedi-me dela e disquei os sete números que ela tinha me dado. Ele mesmo atendeu e senti seu timbre de voz bem exultante por me ouvir do outro lado da linha:

-E aí, seu bom filho da puta, como vão seus velhos? Perguntou-me.

-Tudo em cima, mano velho, seu veadinho gringo de merda. Preciso bater uma lança para você. Quero te contratar, irmão. Para você fazer um livro para a minha editora.

Silêncio do outro lado da linha. Comecei a tagarelar sobre contrato e burocracias por alguns longos minutos e nem dado momento ele atalhou:

-Mano. Acabei de assinar um contrato com a editora pela manhã. Desculpa, foi mal. Mas um bacana aqui leu o que eu escrevo e está todo empolgado em me publicar. Assinei para dois livros. André, meu querido, me desculpe mesmo. O que você leu?

Disse-lhe os títulos e não pude esconder a decepção em minha voz e desligamos juntos. Eu ainda tinha uma chance de publicar meu querido e velho melhor amigo e só teria que aguardar ele desovar duas obras que eu achava que pelo qualidade do texto não poderia demorar muito. Continuei fazendo meu serviço e colocando mais dinheiro no cofre da empresa. Meus velhos iriam fazer uma longa segunda lua-de-mel pela Europa e eu iria ficar no comando dos negócios. Nunca me preocupei com faculdade. Nunca tive planos e muito menos soube o que “queria ser quando crescer” e agora eu era o terceiro acionista da empresa da minha família. Fechei alguns bons contratos, bati boca com os concorrentes, dispensei pessoal incompetente, cortei alguns gastos, processei uma poderosa cadeia de redes de rádio, televisão e jornal por pura ousadia, almocei e jantei com os mais diversos figurões das mais diversas atividades culturais. Tomava porretes homéricos com o “Imperador das Comunicações” do estado. Não poderia ser melhor. Poderia, sim. Com o André Ratón escrevendo para mim. Lembrei nesse momento que eu também não era mais o André. Eu era o Déco Pacard (sobrenome da minha mãe), um dos reis do entretimento do país. Ainda fechei o show da banda que era o suprassumo do thrash metal internacional nesses intervalos. Nada poderia dar errado. Claro que eu fui à apresentação e reservei uma mesa para minha seleta comitiva. Vi a Liz e o Mau Rocks por lá e nem fui até seu camarote. Da Liz eu gostava, mas não suportava a ironia do Mau. Quem ele pensava que era? O “Punk Mor”? Foda-se ele. Se fosse por mim não se apresentava e nem gravava. O som era bom, porém eu não queria aguentar a onda do Mau para o meu lado. Sou maluco mais sou profissional, porra! O show foi inesquecível e a festa depois muito doida. Só tinha uma coisa que eu não tolerava. Para mim e para meus funcionários: Cocaína. Se eu pegasse neguinho usando mesmo fora de expediente era demissão sumária sem direitos trabalhistas. Nenhum puritanismo nisso. Apenas negócio. Minha empresa vai tomar prejuízo pagando clínica de reabilitação para vagabundo “tamanduá bandeira”. Aqui ó!

Os negócios iam de vento em popa e quando meus pais retornaram da viagem estavam felizes, tranquilos, descansados e enamorados novamente. Que delícia estava o ambiente em casa e no trabalho. Eu continuava saindo todas as noites, fumando maconha e enchendo a cara todos os dias e meus velhos faziam vista grossa porque eu apresentava resultado. Vi o André Ratón mais esporadicamente pelos meus compromissos sociais e empresariais. E sempre que saíamos ou nos encontrávamos era a mesma coisa. Bebedeiras pesada, fumaceira da melhor, conversas animadas sobre livros e disco que estávamos curtindo e de como ele achava que tinha se dado mal com aquele contrato. Sim, ele praticamente estava vendendo seus dois livros de mão em mão na rua. Disse- que eu poderia tirar ele de lá com um advogado picareta e que ele deveria trabalhar para mim. Ele retrucava dizendo que não seria ético misturar o pessoal com o profissional e estava cheio de escrúpulos sobre isso e eu lhe ministrava em doses fortes que isso não passava de balela. Depois da enésima dose e eu ter-lhe enchido bem a cabeça ele concordou em assinar com a minha editora. Maravilha. Eu ficava cada dia melhor no que eu fazia. Não era apenas o dinheiro. Era amor. Paixão. Tesão. Assinaria com ele no dia seguinte, mandaria o advogado se virar, relançaria seus primeiros volumes, ele teria tempo suficiente para escrever um terceiro e seu contrato preveria mais cinco anos comigo e se ele quisesse prestação de contas mensais seria lhe dado. Tudo acertado. Quando contei a novidade para minha mãe ela ficou contente e prometeu que daria o tratamento que o Ratón merecia. Ela apenas ficava meio ressabiada com o pseudônimo do autor, mas isso era peixe pequeno. Apenas sugeri-lhe que o escritor assina com o nome que lhe der na telha. Providencie todos os detalhes em duas semanas de exaustiva maratona. Coordenei toda a reimpressão, fiz um trabalho de divulgação hercúleo e finalmente meu velho e melhor amigo teria o tratamento que merecia. Ratón escrevia compulsivamente e me mandava cada conto, texto, ensaio e poesia via internet. Também lhe dei um micro computador e um notoebook para facilitar sua produção. Ele ficou todo faceiro e retribuiu dobrando os escritos que eu arquivava e ia moldando seu formato para ficar parecido com um livro. Sugeri-lhe fazer um blog e ele acatou prontamente. Levei-o a todos as festas e eventos e anuncie-o como se fosse a descoberta da eletricidade. Não poderia falhar de forma nenhuma. Só que nesse ramo quem fala demais dança.

Poucos dias antes do lançamento do livro a chega a bomba! Dueña Sol havia morrido! De repente. De um AVC fulminante. Gosto de pensar que ela não sentiu nenhuma dor. Posso estar fantasiando isso para mim mesmo para me justificar. Ou não. O Ratón estava totalmente desamparado e fora do ar. Fora repentinamente mesmo. O que nos pegou de calças curtas. Mas eu não ia deixar a peteca cair. Meus pais pagaram por todo o funeral. Ratón estava inconsolável no cemitério da Água Verde, o mesmo campo santo em que estavam os restos do Leminski e rezava a lenda dos pais do Carlo Malta, aquele louco. Fiquei o tempo todo ao seu lado e nem por meio milésimo de segundo ele tirou os óculos escuros. Nem eu. Alguns dias antes eu tinha ido jantar em casa destes e Dueña Sol havia preparado uma deliciosa iguaria e ficamos boa parte da noite ouvindo suas histórias sobre Montevidéu e eu escutava os dois falando naquele castelhano musical. No fim do serviço levei o Ratón para minha casa porque ele não queria ir para a sua. Não queria ficar se remoendo com a lembrança dos seus pais mortos. Servi-lhe uísque do bom e fumamos vários cigarros. Minha mãe cedeu um apartamento mobiliado que era de sua propriedade e ele concordou em ficar lá e pagar o condomínio e as contas básicas. Minha mãe não aceitou e mandou-o ficar tranquilo com isso porque ela estava cedendo o apartamento. André Ratón aceitou meio a contragosto e lhe mandei tomar no cu e ficar na sua. Adiei o lançamento até que ele se sentisse forte o suficiente. Não quis saber de igreja e missa de sétimo dia. E retornou a escrever furiosamente sempre me mandando os originais em minha caixa postal. Ele estava mais sombrio agora e parecia ter finalmente atingindo sua maturidade como esteta. Agora ele estava mais doentio e demente que nunca e eu estava simplesmente adorando isso. O revisor tinha pouco trabalho e eu despachava tudo para a gráfica e mandava as provas e o dinheiro que lhe era devido. Era uma grana alta e eu tinha a certeza que meu retorno seria líquido e certo. Todas as quartas feiras eu ia até o apê que o Ratón estava ocupando e a gente se embebedava para valer e eu dormia por lá. Quando ele se sentiu forte o bastante pediu para retornar e fazer o lançamento. Moleza. Distribui cem convites para gente importante dessa indústria e encomendei birita suficiente para chapar os cornos do exército norte-americano, mas com nossos amigos e conhecidos durariam apenas por aquela noite. Ele apareceu pontualmente e tinha uma aura sinistra sobre ele. Foi o que alguns convivas comentaram.

-Porra, o cara acabou de perder a mãe, caralho! Tá fazendo um favor para você e ainda vem gente falar merda? Essa era minha resposta padrão.

Assinou vários livros, fugindo para fumar um Marlboro vermelho quando dava e eu o acompanhava até um café ao lado da livraria que eu tinha contratado. Perguntei se ele estava bem e ele respondeu que sim, tudo joia. No fim da festa pedi um táxi porque estava incapacitado de dirigir por todo o malte que eu tinha ingerido e o Ratón capotou no sofá da sala dos meus pais. Meus velhos também tomaram um pileque gigante. Tudo tinha sido um sucesso e quando fui assumir meu posto fui avisado que o cara tinha vendido toda a primeira tiragem de três mil exemplares devido a uma nota que eu tinha plantado no jornal daquele meu parceiro de bebedeira. Tudo ia bem. Seu segundo livro que eu relancei juntamente com uma segunda edição ia navegando e gaita entrava no meu caixa e eu pagava ao Ratón tudo que lhe havia prometido. Marquei uma nova festa para dali a dois meses. Dessa vez iria ter até banda de rock. Curitiba não perdia por esperar. Convidei o Carlo Malta, o João Mendes e a Gika Bala e paguei o soldo para eles alardearem no pasquim indecente onde escrevinhavam o trabalho do meu velho e melhor amigo.

No dia anterior ela parecia radiante pelos números que eu tinha lhe passado e parecia ter superado a perda. Ficamos bebendo até um pouco depois da meia noite, pois ele disse que tinha que abrir a porta para a moça que iria limpar o apartamento e que tinha sido indicada pela minha mãe. Fui para um bar da moda, tentar não dormir sozinho, mas acabei tão zoado de álcool que nem me lembro de como cheguei em casa.

Acordei com o telefone berrando em minha cabeça cerca de dez horas da manhã. Merda. Acordei atarantado e atendi. Uma voz de mulher em pleno desespero tentava me dizer alguma coisa que naquele torpor que eu estava não entendi nada. Os gritos e soluços ficavam mais histéricos a cada minuto que passava. Disse que iria me vestir e que iria voando para o apartamento que tinha sido cedido para o Ratón. Cheguei lá o mais rápido que pude e não acreditava no que aquela moça dizia e então abri caminho até o banheiro. Lá estava o corpo do meu velho e melhor amigo em rigor mortis jogado no chão frio. Pode parecer estranho o que vou dizer, mas ele tinha um semblante de júbilo. Um arremedo de sorriso podia ser visto em seus rápidos que já estavam arroxeando. Ajoelhei-me ao seu lado e comecei a chorar e praguejar dizendo que ele era um filho da puta, um merda, um veadinho e que eu o amava. Que ele sempre seria meu melhor amigo. Dias depois quando o cara do IML veio com o laudo para eu assinar e liberar o corpo o mesmo me disse que ele tinha sufocado com gás e se matado. Não parecia coisa do André Ratón. Nunca me pareceu um suicida em potencial. Poderia ter sido um acidente quando ele foi abrir o gás para seu banho matinal. Ou um plano magistralmente orquestrado para ele ser sempre lembrado por sua obra? Nunca teria essa resposta.

A notícia da misteriosa morte do autor do momento em seu dia de glória simplesmente quadruplicou as vendas em poucos dias.

Rodei várias edições.

Ganhei mais dinheiro que com tudo que tinha feito anteriormente.

Mas sinto falta daquele garoto que conheci na caixa de areia muito anos atrás.

Filho da puta. Sem mais.

Curitiba, 23 de setembro de 2011 , 8 graus celsius – primeiro dia de primavera.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 23/09/2011
Código do texto: T3236955
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