*FEITIÇO MATINAL*

Manhã. Pleno verão. Caminhava eu pela calçada, rumo ao trabalho. De repente, observei, à distância, um vulto feminino vindo em direção oposta. Rua repleta de pessoas apressadas, porém algo me chamava a atenção naqueles passos leves, descontraídos. À medida que ela se aproximava , pude divisá-la melhor. Possuía aparência simples, elegância discreta, nada em excesso que a destacasse. Meu olhar, disfarçadamente atento, a observava. Aproximávamo-nos, pouco a pouco. Sensação de ímã atraindo metal. Qualquer coisa me enfeitiçava.

Súbito, ela deteve-se diante de uma vitrine de uma loja feminina. Eu já podia então captar melhor alguns detalhes. Sua silhueta em quase nada sugeria desejos de malícia, mas eu me sentia deveras atraído por tal singela figura, surgida entre tantas outras que eu nem sequer percebia. Decidi parar também frente à mesma vitrine. Era uma loja de artigos femininos. E daí? Eu poderia estar procurando um presente para minha esposa, cujo aniversário estava próximo.

Desejei dirigir-lhe a palavra, mentir que pedia sugestão de algo para uma amiga, porém fui derrotado por minha timidez. Olhava-a pelo reflexo do vidro, enquanto ela olhava através. Um rosto comum, tranquilo, cabelos soltos. Que mistério me atraía? Atrevi-me a olhar-lhe nos olhos, quando ela se virou para retomar seu caminho. Não fui sequer notado. Mas percebi algo transcedental naquele brilhante par de olhos. Olhos a possuir um brilho estelar; sim, cósmico olhar que me hipnotizava, me subjugava...

Loucura, mas resolvi segui-la, como um cão segue seu dono, indo no rastro daquele andar que agora já despertava desejo. Alguma coisa me impelia inexoravelmente. Meu Deus,sou casado! Censurei-me, mas cedi à sedução do pecado. Ela atravessou a rua, e, claro, eu também. Haveria alguma chance? Seria eu capaz de vencer o obstáculo da traição? Porventura teria eu alguma graça para aqueles olhos?

Decepção! Alguém a esperava do outro lado. Encontraram-se, beijaram-se suavemente e caminhavam de mãos dadas. Como odiei aquele rapaz! Queria trucidá-lo! Maldito sortudo! Mesmo assim, continuei a segui-los discretamente, pois a hipnose daqueles olhos ainda surtia efeito. Mais adiante, pararam em um canto da calçada.Gesticulavam e pareciam discutir. Sim, era isto mesmo! Nada ouvi, mas certamente era uma discussão séria. Eu parado, em conveniente distância. A cena intensificou-se. Ela desprendeu-se dele e voltou em sentido contrário. Tirou um lenço da bolsa e o passavava na face. Chorava, sem dúvida. Armei-me de coragem. Ao passar por mim , tentei perguntar-lhe se estava com algum problema, se precisava de ajuda. Nada respondeu. Mas antes de afastar-se de mim, empurrou-me gentilmente com a mão em meu ombro. Ainda pude notar as constelações úmidas do olhar cintilando como nunca, acima do lenço que lhe encobria o rosto. Nada mais me restava a fazer. Fim da magia. Agora, eu era um cão sem dono. Porém, estranhamente, eu continuava a sentir a pressão daquela mão em meu ombro. Foi quando ouvi uma voz que me dizia:

-Acorde, Carlos. Você vai se atrasar, começou o horário de verão!

Só então percebi. Aquele belo olhar de estrelas em minha esposa! Era ela! Era ela mesma! Abracei-a ternamente, trouxe-a para meu aconchego, e nos amamos intensamente, como se fosse a primeira vez!

Naquela manhã, não fui trabalhar...

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gajocosta
Enviado por gajocosta em 22/09/2011
Reeditado em 24/08/2012
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