REALIZAÇÃO

Meu amor

Hoje tive tanta vontade de escrever a você que, impulsivamente, peguei papel e lápis e comecei a traçar as primeiras linhas nervosas de ansiedade. Indaguei-me várias vezes se deveria escrever antes de ter a certeza ou após. Contive a ansiedade e agora lhe escrevo com o resultado do exame médico nas mãos.

Senti tanta felicidade em saber que o resultado foi positivo! A felicidade foi maior, pois tantos anos levei para conquistar o que sempre quis, mas sempre alarmes falsos. Hoje tenho certeza, e o resultado do exame está bem na minha frente, onde se pode ler nitidamente em vermelho: POSITIVO.

Tenho vontade de gritar pela janela para que todos ouçam: Consegui, consegui! Consegui que a minha tristeza se transformasse em alegria, e ver nos olhos dos transeuntes a perplexidade do meu ato e a inveja exalando pelos seus poros.

De tão feliz que fiquei, comecei a pensar em preparar um enxoval novo para mim, com roupas bem coloridas, bem alegres, para poder, não só pelo meu sorriso, mas também pelas minhas vestes, dividir minha alegria com aqueles que ainda não conseguiram conquistá-la como eu.

Amor; sempre brigamos, nunca nos entendemos mesmo, mas agora é diferente. Chegou o meu momento. Tenho algo que você nunca poderá tirar de mim.

Choro de tanta felicidade. Não precisarei dar-me a alguém na esperança de... Não viverei mais em função de outrem. Tenho agora algo só meu, a quem amar, dedicar, egoisticamente, dar todo o meu amor que durante a minha jornada consciente de vida me foi negado por muitos.

Não sei se você compreende a minha felicidade, pois está tão longe, ao mesmo tempo tão perto. Mas mesmo assim, acho que não entende nada. Você é igual ao médico que me deu o resultado e não pôde compreender a minha felicidade naquele momento quando li “POSITIVO”, e agradeci a Deus por ter dado a mim tamanha sorte. Inclusive ele sugeriu que eu fizesse uma operação para que não sofresse no futuro. Que mediocridade, quanta hipocrisia, que falsa moral médica! Ele não percebeu a inveja que estava sentindo de mim naquele momento.

Agora estou sentindo um pouco de dor, mas é normal, ela passa. Não vou tomar os comprimidos que o médico receitou – hipócrita. E tão bom sentir a dor pra quem já bem se acostumou com ela! Estou sentindo vertigem, mal posso olhar para o papel, está ficando tudo embaçado, mas sei que o momento ainda não é agora. Como é bom sentir os prazeres que nos dá a carne através da dor!

Demorei muito, confesso, para me acostumar, mas agora a idolatro como se fosse um ídolo. Enquanto eu puder prolongá-la, farei.

O tumor está localizado onde realmente são geradas estas reações: dores de cabeça, cegueiras e insanidades momentâneas. É o que está escrito no resultado do exame, e nesse momento senti que é realidade e pude colocar no papel a sensação que a mim é dada.

E, amor, eu consegui, como lhe havia dito anteriormente, abreviar a minha vida com um câncer no cérebro, e me sinto muito feliz por saber conquistar a minha morte sem métodos bobos. Foi o meu melhor presente de todos os anos o resultado positivo de um câncer cerebral.

Peço, querido, não chore, pois estou feliz. Não blasfeme, pois passei a minha vida inteira blasfemando contra a minha existência, por pensar ser injustiçada de não merecer a morte rápida. Agora não tenho a certeza de que Deus não me abandonou.

Para aliviar aqueles que deixo, morrerei no dia do meu nascimento, pois é muito significativa para mim uma única data, única comemoração.

Peço àqueles que tiveram a oportunidade de conviver mesmo que alguns minutos ao meu lado que não chorem; cantem e sorriam; por mais triste que possa parecer, eu estou muito feliz, cheia de energia, e no meu epitáfio final sejam colocadas as seguintes frases: “Aqui está alguém como tantas outras que estiveram sobre a terra cumprindo a sua missão”.

publicado dez/2003

DILEMAR MONTEIRO
Enviado por DILEMAR MONTEIRO em 19/12/2006
Código do texto: T322715