A florista
Talvez seja exagerado dizer que ganho a vida com flores, mas a verdade é que é delas mesmo que vivo. E sobrevivo – haveria diferença? Se você nunca se comoveu diante da beleza de uma flor, talvez ache pouco importante a minha vida. Tenho vendido flores desde os sete anos, quando minha avó me pegou para criar e nos mudamos para uma casinha rústica ao lado do Mercado. Colho, arrumo e as vendo todos os dias. Aprendi desde cedo a lidar com elas. Flores são fáceis, não guardam segredo, têm impulso para fora, querem sempre se abrir. Fatidicamente murcham, que nada neste mundo é perfeito. Mas são amigas fidelíssimas, de fácil comunicação. Como tenho andado melancólica, estou muito próxima dos lírios, estes amantes tristes. Têm vendido bastante, o pessoal acha “refinado”. Quando fico mais alegre, prefiro as amapolas. Elas são poderosas, ai Deus! me fazem sentir tão feminina que tenho vontade de dançar sem roupa na rua. O Godofredo, meu papagaio e companheiro, prefere as margaridas, meninas de varejo, alegres. Antes de sair de casa, ponho Godofredo no meu ombro. Com um pequeno alicate, corto o talo de uma margarida e a encaixo na orelha esquerda, cobrindo um pouco com o cabelo. Godofredo bica a margarida durante toda a manhã até destruí-la, despetalá-la e eu repô-la com outra. Ele nunca está cabisbaixo, sempre feliz, meu amigo querido alimenta-se de pétalas e pólen. Acho que tem algum tipo de complexo pois certa vez o flagrei batendo asas e bicando um girassol com gestos meio forçados, como se imitasse a leveza dum beija-flor. Pobre Godofredo, ama tanto as flores que é capaz de atuar para conquistá-las.Acho que se um dia eu deixasse de ser florista, ele me abandonaria. É, acho que sim.
Se me perguntassem, “olha, e se você não pudesse mais ser florista?”. Ah! Minha resposta viria cheia de amargura e medo: eu não morreria, mas ficaria tão triste que seria o mesmo que morrer. Minha vida tem sido esse labor, esse cuidado. Faço disto uma vocação. É, aí está a palavra: tenho vocação para as flores. Através delas vejo que o mundo pode existir numa forma, como disse o poeta, insegura mas que é ao mesmo tempo uma espada prateada erguida pela... pela o que mesmo? Ah! pela vida, sim. Mendigos, até os mendigos entendem o que quero dizer, se outro dia mesmo um me sorriu ao receber de mim uma rosa dramática e tão rubra que o hipnotizou. Você, se não gosta ou mesmo já reparou nas flores, ignore, por favor, o que tenho dito aqui. Uma tarde dessas, quando eu e Godofredo saíamos do Mercado carregados de flores e esperança, um homem com um olho de vidro e uma perna manca me parou. Entendam, se vocês não acreditam na redenção que as flores provocam, não continuem a ler minhas palavras. Este homem me parou e estendeu sua mão grossa, parecia um louco. Devia ser. Ele me atacou, agarrou-me pelo pescoço. Godofredo gritou, bateu com desespero suas grossas asas e foi para cima do homem desta vez com a representação de um gavião. A cesta com as flores caiu, eu logo caí também. O homem me pisoteou, chorou, em seguida gargalhou e foi embora mancando. Eu percebi desde o começo que ele era louco. Estremecida com o susto, as pernas trôpegas, acolhi Godofredo de volta ao ombro – ali era seu porto seguro, meu pobre e corajoso amigo – e recolhi as flores para colocá-las de volta na cesta. Vocês talvez achem bobagem isto que contei, este homem louco que me atacou e estas flores no chão. Não sei bem, quis apenas contar. As flores não foram maculadas, estavam intactas na cesta. Godofredo é que teve um pequeno colapso nervoso, coitadinho, pude ouvir seu delicado coração bater freneticamente. Teve medo de me perder e perder o contato diário com as flores. Foi um susto e tanto. Mas ficamos bem. No dia seguinte, além de suas margaridas, pus na orelha também uma flor do campo deliciosa que ele adorou. Passamos o dia no Mercado como de costume. Sabíamos o que aquilo queria dizer.